Veja quais foram as falhas do processo que condenou Haddad 

Reportagem da Folha de S.Paulo, publicada nesta sexta-feira (13), revela como a Justiça Eleitoral condenou o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) com base num processo repleto de falhas e ilegalidades. Na sentença, por exemplo, há avaliações do consumo de energia elétrica de uma gráfica feita por um juiz sem perícia técnica – o que é vedado por lei. Essa mesma análise teve como resultado uma estimativa equivocada de gastos de eletricidade na impressão de material de campanha.

Fernando Haddad

De acordo com o juiz Francisco Carlos Shintate, autor da sentença, duas gráficas teriam emitido notas fiscais frias para a campanha vitoriosa de Haddad à Prefeitura de São Paulo em 2012. O petista teria cometido suposto crime eleitoral ao incluir esses documentos em sua prestação de contas. O juiz admite que Haddad não participou da elaboração das notas fiscais, mas, numa tese persecutória, tenta insinuar que Haddad mostrou desinteresse pela verificação da documentação de e, dessa forma, “assumiu o risco”.

No processo na Justiça Eleitoral, foram examinados os envolvimentos da LWC Editora Gráfica e da Cândido Oliveira Gráfica, apontadas como as emissoras de notas fiscais falsas à campanha de Haddad. No caso da LWC, o juiz Shintate afirmou, sem parecer técnico, que a gráfica não teve aumento substancial de consumo de energia no período eleitoral de 2012 – e isso indicava, em tese, que a empresa não teria produzido o material de propaganda eleitoral registrado nos documentos fiscais fornecidos para o petista.

A tabela usada pelo juiz como fundamento para a decisão foi incluída na sentença. Com ela, é possível comparar os gastos de energia da gráfica nos meses de agosto e setembro de 2012, bimestre de pico das campanhas, com os dados relativos ao mesmo período do ano anterior, quando não houve eleição.

Em relação a agosto, a elevação foi de 50% na comparação entre os consumos de 2011 e 2012 (46,3 mil kWh e 69,4 mil kWh, respectivamente). Quanto a setembro, o acréscimo foi de 33% (62 mil kWh em 2011 e 82,6 mil kWh em 2012). Segundo a decisão judicial, esses aumentos na conta de luz não foram significativos – conclusão que foi uma das bases da condenação de Haddad.

Mas três técnicos do setor de gráficas e um de uma fabricante de máquinas ouvidos pela Folha afirmam que o acréscimo de pelo menos 20 mil kWh verificados nesses dois meses seriam suficientes para a produção do material declarado por Haddad. Segundo levantamento feito pela reportagem nas notas fiscais declaradas pelo petista, a LWC produziu 4,8 milhões de panfletos e 3,7 milhões de cards (propaganda em papel duro, do tamanho de um cartão de visita) em agosto de 2012. No mês seguinte, a produção foi de 300 mil panfletos, 900 mil folhetos e 3 milhões de cards.

A Folha também pediu à defesa de Francisco Carlos de Souza, conhecido como Chicão, dono da gráfica, a relação de equipamentos que a firma usava à época. Com base nesses dados, a reportagem procurou uma das fabricantes das máquinas e solicitou um cálculo do consumo de energia para produção da quantidade de material de campanha que consta nas notas fiscais de Haddad.

Segundo a estimativa da fabricante, que preferiu não ser identificada, a produção de 4,8 milhões de panfletos e 3,7 milhões de cards consumiria ao todo 10,7 mil kWh em 204 horas de trabalho. Já a confecção de 300 mil panfletos, 900 mil folhetos e 3 milhões de cards empregaria 2.800 kWh em 53 horas de trabalho, de acordo com a estimativa.

Assim, para os técnicos ouvidos pela reportagem, a sentença apresenta dois problemas: não houve perícia técnica no processo e houve equívoco no argumento de que o aumento no consumo de energia da gráfica LWC não foi significativo em agosto e setembro de 2012.

Em relação à outra empresa acusada, a Cândido Oliveira Gráfica, a defesa da firma apresentou uma alteração de contrato social e disse que meses antes das eleições ocorreu uma mudança no local de produção de material de campanha, mas essa situação não foi registrada na concessionária de energia. A gráfica juntou aos autos uma conta de energia de seu novo endereço, que ainda estava em nome de outra empresa, do mês de setembro de 2012, período de campanha, com consumo de 55 mil kWh. O magistrado, porém, entendeu que tais documentos não serviram para comprovar que a gráfica prestou os serviços descritos nas notas que emitiu para Haddad.

Na decisão judicial, o juiz ainda argumentou que um levantamento da Polícia Federal mostrou que a empresa tinha seis funcionários à época da eleição, e tal número seria insuficiente para produzir o material. Mas, a exemplo da avaliação sobre o consumo de energia elétrica, não usou nenhuma perícia específica e teve por base apenas dados levantados pela PF.

Uma outra justificativa apresentada pelo juiz foi a de que as gráficas não utilizaram insumos suficientes para a realização dos trabalhos, novamente sem um laudo sobre o tema. O gasto total da campanha de Haddad em 2012 foi de R$ 68 milhões (R$ 99,3 milhões, em valores atualizados pelo IPCA). As despesas declaradas com as gráficas foram de R$ 607 mil (R$ 890 mil, com a correção monetária).

De acordo com o magistrado, em interrogatório, Haddad disse que não se preocupava em controlar diretamente as despesas de campanha e delegava tal atividade a Francisco Macena, o tesoureiro responsável pelas contas do petista. Para o juiz, foi essa postura de Haddad que permitiu a responsabilização dele no caso.

“Ao se desinteressar do controle das despesas e não conferir as notas fiscais e respectivos recibos, criou o risco não permitido de falsidade ideológica para fins eleitorais, com o uso de notas fiscais falsas na prestação de contas, o que veio a se concretizar, sabido que tem havido grande incidência de processos por caixa dois eleitoral, em razão de doações não contabilizadas e de despesas inexistentes lançadas”, sentenciou o magistrado.

O advogado e professor Flávio Luiz Yarshell, titular da Faculdade de Direito da USP, que foi juiz eleitoral do TRE paulista de 2007 a 2012, preferiu não analisar o caso específico de Haddad, mas afirmou que, nesse tipo de delito, “o dever de acompanhar pessoalmente os gastos de campanha não chega ao ponto de impor ao candidato o ônus de controlar aspectos relativos à forma e à capacidade de trabalho dos prestadores de serviço de que se vale”. Segundo Yarshell, “a falsidade praticada pelo prestador de serviços, em princípio, não se estende ao tomador”, completou.

O advogado e ex-ministro do STF Carlos Velloso, que já presidiu o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), disse que o tema da condenação de réus que assumiram o risco de cometer crimes, por meio de ações ou omissões, é cercado de controvérsias na comunidade jurídica. “É preciso que haja algum indício ou prova de que o indivíduo não se importou com as consequências de sua conduta”, afirmou Velloso.

O juiz Shintate entendeu que o fato de a prestação de contas de Haddad trazer essas notas levou à configuração do crime que, no jargão técnico, é denominado falsidade ideológica para fins eleitorais, previsto no artigo 350 do Código Eleitoral. Esse foi o delito expressamente mencionado no pedido de condenação que consta na denúncia oferecida pelo Ministério Público em maio de 2018.

O magistrado absolveu Haddad quanto à prática de corrupção passiva, lavagem de dinheiro, improbidade e quadrilha. Para tratar desses outros delitos, invocou decisões recentes do STF que autorizam juízes eleitorais a apreciarem crimes comuns conexos às condutas delituosas de natureza eleitoral.

Apesar de a denúncia somente ter requerido a punição de Haddad pelo crime de falsidade ideológica para fins eleitorais, a peça acusatória descreveu outras situações, como o suposto repasse de dinheiro oriundo do esquema de corrupção na Petrobras, investigado na Operação Lava Jato, para pagar dívidas de campanha do ex-prefeito. Com base nesse relato da denúncia e nas decisões recentes do STF sobre crimes conexos, o juiz eleitoral absolveu Haddad.

Os donos das gráficas apontadas no processo, Francisco Carlos de Souza e Ronaldo Cândido de Jesus, também foram punidos pelo crime comum de quadrilha, além do delito de falsidade ideológica para fins eleitorais.

O criminalista Pierpaolo Bottini, advogado de Haddad, disse que a defesa não apresentou pedido de perícia no processo pois “o ônus da prova é da acusação”. Bottini informou que recorreu da decisão e que apresentará seus argumentos ao Tribunal Regional Eleitoral.

O advogado de Francisco Souza e Ronaldo Cândido de Jesus, Ismar Marcilio de Freitas Neto, afirmou que não solicitou a produção de laudos na causa porque “tal afirmação –incapacidade produtiva – nunca havia sido objeto do processo. Já foi apresentado o recurso cabível, por meio do qual se confia na reforma da teratológica decisão pelo Tribunal Regional Eleitoral”, afirmou o advogado.