O dinheiro e a democracia no governo Bolsonaro

O dinheiro não acabou nem irá acabar, mas a democracia corre risco.

Por Bráulio Santiago Cerqueira

No início da semana retrasada, o Ministro da Economia, diante das reiteradas dificuldades de cumprimento das rígidas metas fiscais brasileiras, afirmou: “Não vamos subir o teto de gastos. Vamos é quebrar o piso”.

O Ministro, no entanto, se precipitou. Em 2019, como evidenciado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), não é a regra constitucional do teto de gastos que corre o risco de descumprimento pelo Executivo, mas a meta de resultado primário definida na LDO. Isto por causa da frustração de receitas derivada do lento crescimento da economia, que mais uma vez se encontra à beira da recessão técnica. Assim, não há necessidade imediata de revisão do teto de gastos, mas sim da meta de resultado primário, bastando o envio ao Congresso de proposta de alteração da LDO.

Até agora, na direção oposta, as autoridades econômicas não sinalizaram alteração na meta de primário, passando inclusive a afirmar que o “dinheiro acabou”, um absurdo lógico uma vez que o governo brasileiro emite sua própria moeda e é credor em moeda estrangeira, sendo as restrições ao gasto impostas por ele mesmo ou pela legislação que sempre se pode alterar, como no caso da LDO, ou do teto de gastos que precisará ser flexibilizado no futuro, ou da “regra de ouro” que, aliás, já foi alterada este ano para que o “dinheiro não acabasse” para o Bolsa Família, benefícios aos idosos e outras despesas correntes.

A despeito da letargia econômica e de contar com mais de R$ 1 trilhão em caixa, a opção do governo vem sendo mesmo a de implodir o piso de gastos, retardando a recuperação da renda na economia e desarticulando as políticas e gestão públicas. Primeiro, com a prioridade conferida a uma reforma da previdência centrada em redução de despesas com fragilização de direitos, em que pese o benefício médio do Regime Geral de Previdência Social se situar em R$ 1.280,00. Depois, com as ameaças de paralisação de concursos e congelamento de tabelas dos servidores, com a notável exceção dos militares. E sucessivamente, com a compressão dos investimentos públicos, extinção de bolsas de pesquisa, cortes horizontais na Educação, na Saúde, na Cultura, no Meio Ambiente e outros ministérios, cancelamento ou atraso em obras como a recuperação do Museu Nacional recentemente destruído etc.

A publicação da Portaria no 424/2019, do Ministério da Economia, também naquela semana, encaixa-se de forma pitoresca nesse roteiro. Supostamente “sem dinheiro” para fechar o ano, o Ministério resolveu cortar na própria carne, suspendendo as despesas com capacitação de servidores, a contratação de serviços, a admissão de estagiários, a realização de qualquer melhoria física nas suas instalações e até a compra de café. Além disso, tendo sempre em vista a economia de recursos, o horário de funcionamento do Ministério em todo o Brasil estará limitado, até 31 de dezembro, das 8:00 às 18:00; depois disso nada de trabalho da Receita Federal, na Procuradoria da Fazenda, na regulação do mercado de capitais, na gestão, controle e pagamento a dívida pública etc., uma temeridade que provavelmente não será cumprida nas repartições.

A “falta de dinheiro” também foi apresentada como justificação do anúncio recente da venda de inúmeras empresas estatais, como a Casa da Moeda, os Correios, Codesp, Serpro, EBC, dentre outras. No futuro próximo pretende-se avançar sobre as empresas mais relevantes e lucrativas da União, como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ou seja, num momento de crise, com ativos públicos desvalorizados, aposta-se em privatizações para a racionalização da gestão, leia-se, redução de pessoal, sem garantia de injeção de novos investimentos na economia.

Enquanto isso, pretende-se “modernizar” a administração pública e “refundar” a República com a inobservância da ordem de votação das listas tríplices nas universidades federais, com a promessa de nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” no STF, com a censura nas divulgações, cerceamento de autonomia técnica e substituição de servidores de carreira por indicados em instituições federais de pesquisa e produção de informações como INPE, IBGE, Fiocruz e INEP, com as mudanças de 4 dos 7 integrantes da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos porque “o Presidente da República agora é de direita”. Os exemplos se sucedem na Polícia Federal, na Receita Federal do Brasil, na paralisia das nomeações para os Conselhos Fiscais de estatais postas ou não à venda. Nesse contexto, prega-se o fim da estabilidade do servidor público.

A história mostra, contudo, que avanços republicanos e democráticos assumem outra feição ao longo do tempo. Graças à Seguridade Social, com a integração da Previdência, Assistência e Saúde, o Brasil logrou em três décadas praticamente eliminar a miséria na velhice. Em 2018, em que pese a predominância do falacioso discurso do Estado inchado, a União gastou menos com pessoal do que em 2002 em % do PIB. Por sua vez, jamais a economia brasileira cresceu sem algum tipo de coordenação e articulação entre investimento público, privado e estrangeiro. Universidades e institutos federais concentram praticamente a totalidade dos investimentos em ciência básica e aplicada no País. Donos de uma das maiores biodiversidades do mundo, precisamos lidar com ameaças constantes a elas, incluindo os desafios de preservação da maior floresta tropical do mundo. E sim, recordar é viver, foi somente após 1988 que o ingresso no serviço público passou a se dar exclusivamente pela via impessoal do concurso público.

O Brasil não cresce há cinco anos, voltou a concentrar renda, apresenta taxas recordes de desemprego e informalidade e vê a pobreza e miséria crescerem novamente, ao ponto de se encontrar no limiar do retorno ao mapa mundial da fome. Fragilizar direitos, cortar o cafezinho das repartições, vender o que resta do patrimônio público e desorganizar a política, os serviços e as instituições públicas não resolverá a crise, pelo contrário, a intensificará.

Não é o dinheiro do governo que acabou, é um projeto mínimo de república, democracia e civilização que está sob ameaça.

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Mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Secretário Executivo do UNACON Sindical.