O que a esquerda tem a aprender com a revolução bolivariana?

Grande parte da esquerda brasileira olha para a Venezuela com os olhos de um europeu. O paradigma da democracia liberal não consegue ser superado por uma parcela da esquerda para analisar o processo bolivariano.

Por Thiago José*

Hugo Chavez

Em geral, há uma certa idealização dos processos revolucionários. Como se fosse possível realizar transformações estruturais em um percusso reto e tranquilo, quase sem turbulências. A verdade é que isso não é possível, simplesmente porque essas mudanças tocam nos alicerces da sociedade e, inevitavelmente, causam convulsões sociais e reações internas e externas. A externa é nitidamente representava pelo poderio imperial dos EUA, que instrumentaliza a democracia para fazer dela uma filial de seus interesses. A interna é representada pela elite subserviente ao colonizador, ávida para entregar as riquezas da nação aos interesses estrangeiros.

Não é à toa que a principal reação ao processo bolivariano foi a dos bancos – que bloquearam recursos do Estado venezuelano no exterior e se negaram a repatriar quantias bilionárias – e das multinacionais, que por diversos motivos decidiram abandonar a produção industrial do país para se somar às ações de sabotagem dos EUA e dos especuladores financeiros. Por isso que as situações de extrema dificuldade, antes causada pela crise de abastecimento, em 2016, nas quais os boicotes nacional e internacional fizeram com que desaparecessem das prateleiras produtos essenciais para vida, e hoje pela crise inflacionária, que eleva dia a dia o custo de vida do povo, são avaliadas pelos movimentos bolivarianos como uma natural turbulência de um processo revolucionário em que a resiliência – odeio essa palavra, mas no momento me rendo a ela – é a peça fundamental para a vitória.

Se olharmos sem paixões para a revolução de outubro, também veremos suas dificuldades. Os acontecimentos de 1917 não se concluíram com Lênin desfilando de carro aberto aclamado pelo povo até o Palácio de Inverno. Custou uma guerra civil, fome e milhões de vidas para que o processo pudesse ser concluído, mesmo com diversas insuficiências. Assim também ocorre na Venezuela. Não como no passado, mas por outros meios de combate: a guerra econômica e a guerra midiática, que tenta por todos artifícios interromper o desenvolvimento revolucionário em curso. Justamente pela convicção do povo no inimigo a ser derrotado – o imperialismo estadunidense – é que o processo bolivariano continua em pé. Ao perguntar a um senhor num ato o que representava para ele a revolução, o mesmo respondeu imediatamente que essa revolução era a continuação da luta pela libertação iniciada por Bolívar. Essa é lucidez do povo de compreender o que está em jogo, o papel geopolítico do petróleo venezuelano e a soberania e independência de um país.

Aqui no Brasil, guardada as devidas proporções, também sofremos com uma pressão midiática e econômica, com movimentos insuflados pelo capital estrangeiro para manipular o povo e entregar sua riqueza. De 2014 para cá, vimos uma ampla manipulação dos meios de comunicação para desestabilizar a nossa economia e, em conluio com setores do judiciário, criminalizar a política e prender a principal liderança popular do Brasil: Lula. Isso ocorreu com uma certa facilidade, com o povo e alguns setores da esquerda mordendo essa isca, resultando num certo fascismo neoliberal do século XXI.

Diante disso, sem muitas pretensões, resolvi lançar três pontos da revolução bolivariana que podem ser debatidos como uma contribuição para as forças de esquerda brasileiras.

Questão nacional e a questão colonial

Ao ser preso após a tentativa de golpe em 1992, o então tenente-coronel Hugo Chavez propõe ao povo venezuelano a agenda bolivariana. Anos mais tarde, ao sair da prisão gozando de imensa popularidade, o líder venezuelano vai até o túmulo de Simon Bolívar e promete junto ao Libertador continuar e seguir a sua luta pela independência. Essa consciência de que, por outros meios, a América Latina segue sendo colonizada por interesses estrangeiros é o fio condutor do pensamento bolivariano. No Brasil não temos, como no restante de nosso continente, episódios vitoriosos de libertação. A nossa independência foi realizada pelo filho do nosso algoz que, mais tarde, abandonou seu trono para assumir a corte lusitana. A República foi instaurada a partir de um golpe de cúpula, no qual o povo ficou excluído.

Fundaram a nação brasileira na ideia de suas belezas e riquezas naturais. O que nos faz brasileiros são as florestas, as montanhas e mar representados, supostamente, nas cores de nossas bandeiras. À nossa história vendem, sem nenhum desconto, a ideia de um povo pacífico, como se essa submissão não fosse forçada e estivesse relacionada à nossa herança escravocrata. Os inúmeros conflitos decorridos ao longo dos séculos XIX e XX são ignorados. A imagem que formam do Brasil para assim educar o povo é da perspectiva dos mais ricos que celebram, desde Miami, sua vida fácil às custas do suor e sangue dos brasileiros. Parece até meio exagerado, mas só quem acredita nesse exagero são aqueles que já naturalizaram a barbárie nas periferias e regiões mais pobres de nosso país. Preciso assumir a nossa condição de colônia. Não nos moldes dos séculos passados, mas em outros marcos. Embora o Brasil tenha todo o aspecto de um Estado-nação, ainda reside uma elite entreguista e lesa-pátria que não quer ser brasileira. Que, ainda, é tutelada e obediente, como um cão dócil , pelos interesses estrangeiros. A luta pela nossa verdadeira independência precisa ser um denominador comum entre todas forças de esquerda e progressista.

Para isso, é necessário contar a nossa história de outra forma e encontrar episódios e personagens que lutaram por esse caminho até aqui. Não temos, como nos demais povos latinos americanos, homens e mulheres vitoriosos nesse processo. Temos apenas derrotados(as). Que seja desse modo original, a partir da perspectiva pelos que perderam a luta por nossa verdadeira independência, que contemos a nossa história. Devemos buscar brasileiros e brasileiras que estiveram dispostos a enfrentar esse dilema crucial e trazê-los à tona para perpetuar o processo de libertação. A carta testamento de Getúlio poderia ter sido escrita por Lula, pois as “aves de rapina” ainda persistem e desejam a Petrobras. O desafio nesse momento é traçar esse paralelo e colocar a questão nacional no centro de debate.

Formação de um novo senso comum

O processo bolivariano é cristalizado a partir da formação de um novo senso comum. Está enraizado no seio do povo as ideias de Bolívar, o papel da Venezuela com seu petróleo no cenário internacional e os interesses que estão em jogo. Isso é o que uma criança ou uma senhora pode te contar com extrema facilidade. Tal elevação de consciência só ocorreu devida à democratização dos meios de comunicação e de uma longa campanha de alfabetização. Nos primeiros anos de governo chavista, a erradicação do analfabetismo foi tomada como uma das prioridades, consagrando a Missão Robson como um grande esforço para educar a população. A educação popular se deu a partir do aprendizado da leitura conjugado com o conhecimento sobre os direitos sociais e civis.

O processo de inclusão também foi relevante. As academias militares têm acesso democrático, que permite aos mais pobres o ingresso ao oficialato. Nessa questão, houve uma mudança essencial de “Academia Militar” para “Universidade Militar”, na qual o os jovens têm a sua formação em uma Universidade. Por certo, continua sendo uma instituição militar e, portanto, segue essa vocação.

A formação de um novo senso comum não se faz do dia para a noite. É um processo longo, árduo e cotidiano. Em geral, caímos nas armadilhas eleitorais e a utilizamos como um termômetro do povo. Sem dúvidas, a luta eleitoral é imprescindível nesse momento que a política vira a pauta do dia. Todavia, não é único instante de disputa das consciências para um novo consenso. Inclusive, talvez, seja a situação menos adequada. Isso porque as forças de esquerda ficam à margem desse processo, em especial por questões financeiras, e são exposta ao constrangimento de escolher entre um radicalismo minoritário e acordos eleitorais que impõem um fardo pesado. Nenhum desses caminhos são adequados para organizar e mobilizar a população a partir de um novo norte. Repito: não precisamos ser negligentes em relação aos processos eleitorais. Entretanto, eles não precisam ser a referência chave da luta política. Para transformações profundas e estruturais, que sejam capazes da consolidação desse novo senso comum progressista, é necessário paciência para seguir um longo caminho.

Tolerância do dissenso

Certa vez vi um filme que se passava em Cuba que muito me fez lembrar a Venezuela. A cena registrava uma viagem de trem pela ilha caribenha até que ele para repentinamente. Há, então, um grande tumulto e reclamações daquele serviço que estava deixando a desejar. Nesse momento é que uma senhora – que certamente viveu os momentos da revolução – diz algo que ficou marcado para mim: “não é que eu seja contrarrevolucionária, mas merda é merda.” Não concordar com determinada ideia ou apontar erros e divergências é visto por muitos setores da esquerda como ameaçador ou um erro. Esse fato não ajuda na construção de um movimento de massas.

Acredito que não fiquei tempo suficiente para fazer uma análise do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Talvez esses incorram num traço comum à forças políticas com peso que é o hegemonismo exacerbado. Entretanto, por ser um partido massivo, o PSUV engloba diversos movimentos e atraem boa parcela da população. Isso só é possível a partir de uma tolerância do dissenso (termo que pego emprestado do comunista italiano Lucio Magri). Discordar não é dividir. E quem nega as evidências (merda é merda!) acaba caindo num ostracismo. Pesa ainda a questão que na atualidade a vida virou um grande fórum a partir das redes sociais, em que geram boatos e informações imprecisas em que dar uma opinião é sempre uma urgência.

Vi muitos movimentos populares venezuelanos críticos ao governo de Maduro. Apontando outros caminhos e questionando outras direções. Mas isso significa que eles querem a saída de Maduro? Não. Isso significa que as contradições geradas pelo processo revolucionário é que continuam a dar impulso para esse mesmo processo. O plano de fundo é a luta pela libertação. As sanções econômicas e as demais dificuldades geradas pela guerra não são subestimadas, mas a crítica não é vista como uma ameaça. Pelo contrário, a crítica é vista como uma construção. Um empurrão para seguir em frente.

No momento das manifestações de 2013, nessa convulsão social que ainda é uma incógnita, mas que certamente foi instrumentalizado pelos setores reacionários (quem ainda se lembra da célebre frase de Arnaldo Jabour: “amigos, eu errei!”), o governo petista respondeu com números: olhem, povo, como a vista está boa! Pleno emprego, bons índices sociais e econômicas, bom consumo daquela “nova classe média”. As possíveis críticas eram sempre assimiladas como uma possível ameaça, mesmo ainda que fossem justas.

O mesmo valem para as organizações de esquerda. Quem almeja realizar um movimento de massa precisa tolerar as divergências. Ou então, correm o risco de se transformar em seitas. Cheias de razão e com coesão nas suas certezas, mas irrelevantes para a realidade. Para construir um novo senso comum é necessário uma compreensão de que críticas surgirão pelo caminho. Por óbvio, tal dissenso precisa ser algo que construa, que some à direção do movimento. Que consiga escancarar as contradições para, assim,gerar uma nova síntese.

Essas são singelas contribuições que acredito serem capaz de somar às forças de esquerda para que, a partir de um novo denominador comum, consigamos criar uma nova maioria na sociedade brasileira a partir de um novo consenso: mais progressista e altivo, que queira enfim a nossa liberdade, mesmo ainda que tardia.