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Urariano Mota: Dom Hélder Câmara no Recife da ditadura 

No dia 27 de agosto, completaram-se 20 anos da morte de Dom Hélder Câmara. No dia seguinte, 28 de agosto, foram lembrados os 40 anos de uma Anistia que libertou presos políticos, mas deixou os torturadores impunes.

Por Urariano Mota*

Dom Hélder Câmara

Para um dia e outro, recupero estas linhas que publiquei sobre o arcebispo vermelho no Dicionário Amoroso do Recife:

Hélder Pessoa Câmara sempre recebeu, no amor de toda a gente, o nome de Dom, como se o cargo na Igreja lhe fosse nome de batismo, como se a posição de bispo e arcebispo lhe tomasse toda a pessoa. Aliás, no Dicionário Houaiss, como uma prova indireta da sua glória, para a palavra “dom” a primeira definição é: ecles hist, denominação que acompanha certos cargos eclesiásticos, inicial ger. maiúsc. (D. Hélder Câmara).

Na verdade, Dom Hélder Câmara possuía muitos dons além do título na Igreja. Quando se completaram os 105 anos do seu nascimento em 2014, muitas homenagens surgiram. Pelo tom geral que vimos, quase fizeram dele uma nova Madre Teresa de Calcutá. Ainda que tenha nascido seis meses antes da santa Madre Teresa, há uma tendência de fazer de Dom Hélder uma ovelha só mansidão e paz. Mas esta seria uma boa ocasião de rever os anos de ditadura no Brasil.

Quem foi jovem no Recife, no Brasil depois de 1964, sabe: Dom Hélder era o arcebispo vermelho, o perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que o arcebispo fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com mais de um ponto de conflito.

Lembro-me de Dom Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese. Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre poucas vezes mencionado. Estávamos concentrados, reunidos em frente ao Palácio dos Manguinhos, para um protesto. Então Dom Hélder Câmara nos dirigiu uma fala. E vi, ouvi e notei: Dom Hélder era um orador, um excepcional orador. Franzino, baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu pensamento em nossos espíritos.

No discurso vivo de Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de suas palavras. Com os olhos grados, sem gritar, ele comovia a todos, e para comover não recuava diante dos motivos mais piegas. Lembro que para falar do afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que éramos solidários, ele fez com que todos cantassem o Como Vai Você?, de Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos. Confesso que até eu cantei, com a voz embargada, a canção.

Da segunda vez, eu não o vi, mas pude ouvi-lo e percebê-lo, no rádio. Quem já leu suas crônicas, que em boa parte foram reunidas no livro Um Olhar sobre a Cidade, entenderá o que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônica radiofônica. Nessas crônicas há um escritor, que deveria corar de vergonha muito imortal da Academia Brasileira de Letras. Nelas, Dom Hélder pega um motivo, um tema de aparência distante, e traz para o seu texto, com observações poéticas e líricas, que se aplicam ao cotidiano de todos, intelectuais ou analfabetos, ateus ou cristãos. Para todos os públicos, valeria dizer. Leiam, melhor dizendo, ouçam se puderem: Flores murchas.


 

Dom Hélder pergunta: “O que fazer quando as flores murcham?”. E adiante, fere mais fino: “Uma roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores…”, para concluir: “Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores”.

O que fazer quando as flores murcham? O que responder a uma roseira sozinha, que não terá um Deus a seu lado na ressurreição, porque um dia ela será murcha? Eu não posso imaginar um céu sem flores, respondia o poeta Hélder. Todos nós, leitores ateus e ouvintes, nisso também acreditamos.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.