“Contexto é de agressão e não só de ameaça à universidade”, diz reitor

Com um extenso currículo no meio acadêmico, o ex-reitor da UFBA e professor da USP, Naomar de Almeida Filho, em entrevista ao site da Fiocruz, defendeu que a universidade precisa se recriar como espaço popular, mas que no contexto atual a atividade universitária sobre agressão, e não apenas ameaça, diz.

Naomar de Almeida Filho - Foto: USP

Quando reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), entre 2002 e 2010, Naomar de Almeida Filho iniciou mudanças profundas na formação universitária, ao introduzir o modelo dos bacharelados Interdisciplinares, que rompem com a rigidez curricular baseada em disciplinas e propõem maior integração social entre a universidade e a sociedade. Essa experiência, que ficou conhecida como “Universidade nova”, foi levada para outras universidades do país, no contexto de expansão de vagas e criação de novos cursos e campi que acompanhou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído em 2007 — Naomar contribuiu com a criação e também foi reitor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), entre 2013 e 2017, que adotou esse modelo em todos os seus cursos de graduação.

Médico sanitarista de formação e professor titular de epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, ele se dedica ainda a compreender o papel da universidade e sua relação com a sociedade. Suas ideias sobre este tema estão em alguns de seus livros como “Universidade nova: Textos críticos e esperançosos” e “A universidade no século XXI: Para uma universidade nova”, este em coautoria com Boaventura de Sousa Santos. Em entrevista à Radis, ele destaca que a expansão vivida pelas universidades foi uma iniciativa importante, mas insuficiente, e que o contexto atual não é apenas de “ameaça”, mas de “agressão” à atividade universitária. Segundo ele, a essas instituições está colocado o desafio de como se fazer “socialmente responsável, reafirmando a qualidade e a competência” — não para os “herdeiros da elite”, mas para o povo.

A expansão vivida pelas universidades públicas brasileiras, com aumento do número de vagas e criação de novos campi e cursos, de fato representou um vetor de democratização do ensino superior no Brasil?

Foi uma iniciativa importante, mas insuficiente. De fato, dobramos o número de vagas públicas no ensino superior, porém a demanda cresceu mais ainda. O resultado foi uma expansão do ensino privado maior do que se esperaria para falar de democratização do acesso. O que falta? Acho que ficamos devendo uma reestruturação curricular mais radical, capaz de atingir um maior contingente da população na idade de escolarização universitária. A simples ampliação de vagas em cursos profissionalizantes convencionais não vai contribuir para democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras.

Podemos falar que houve uma “deselitização” da universidade brasileira nos últimos anos?

Longe disso. Houve uma janela de oportunidades mal-aproveitada. E o pior é que as inovações curriculares e pedagógicas que iniciamos aproveitando os governos progressistas e as políticas sociais estão sendo neutralizadas de dentro mesmo, de dentro da própria universidade. É curioso que esse tema não encontra um recorte muito claro entre polaridades políticas. A ideia de que um pensamento, digamos, de esquerda defenderia a massificação, e um pensamento antagônico de direita a elitização. Isso porque muitos, a partir de conceitos considerados convencionalmente progressistas, fazem o discurso da defesa da qualidade. Por aí justificam um falso discurso de excelência e meritocracia, usando uma equação que parece simples: quanto mais gente entra na universidade, mais massificado fica o ensino e, portanto, de qualidade mais reduzida. Então não tem saída nessa lógica: obrigatoriamente vem uma interpretação de que a universidade, nesse caso, deve ser um privilégio para poucos. Ela tem que ser ótima, mas para um número muito pequeno de pessoas. Sei que essa é uma opinião que pode desagradar, mas acho que poderíamos ter ido mais rápido e mais fundo na mudança. E a situação política atual, conservadora, essa conjuntura à beira do fascismo social, não me dá muita esperança de avanços. A palavra ameaça é pouco. Penso que o assédio institucional por parte do governo federal já começou e agora vira agressão.

Qual a cara da universidade pública hoje?

É uma cara feia. O sistema brasileiro de educação superior se desenvolveu sobre uma série de distorções. Não vem cumprindo as finalidades da formação universitária e perdeu sua capacidade de formação profissional. Por dois motivos. Primeiro, os conceitos que eram modernos há dois séculos, um século ou 20 anos, hoje estão completamente ultrapassados. A ideia antiga de que o conhecimento é um bloco que pode ser quebrado em pedaços e, depois, em estruturas menores ainda, até chegar ao tamanho do que chamam disciplina, que, na verdade, é uma secção do corpo de conhecimento, essa ideia não vale mais. Há muito tempo se sabe que o conhecimento não é uma soma de fragmentos e sim uma rede complexa de métodos e objetos. Essa é a raiz conceitual da obsolescência do atual sistema universitário. A segunda é a própria questão da história das universidades como modelo de formação profissional. A universidade brasileira é baseada no modelo europeu-mediterrâneo do século 19, quando havia apenas cinco profissões regulamentadas. A educação universitária brasileira atual conserva modelos de formação das velhas universidades europeias, onde prevalece uma concepção fragmentada do conhecimento, agravada por reformas universitárias frustradas justamente porque o conservadorismo venceu. Essa estrutura acadêmica sofre sérios problemas, que precisamos urgentemente superar. Por um lado, os currículos de graduação são estreitos e bitolados, com forte viés monodisciplinar, agravado pelo enorme fosso existente entre a graduação e a pós-graduação. Por outro lado, a excessiva precocidade na escolha de carreira profissional, além de tudo submetida a um sistema de ingresso direto aos cursos profissionais através de um exame como o vestibular, desenhado para selecionar alunos portadores de conhecimento (ou memorizadores de informações), sem formação humanística e política, sem valorizar as diferenças e a sustentabilidade. Continuamos com uma universidade elitizada e elitizante. Não só para poucos, mas com um recorte preocupante de desigualdades internas.

Como a introdução das políticas de cotas e as ações afirmativas modificaram as relações no interior das universidades?

Realmente, em vários espaços da educação superior, programas de ação afirmativa foram bem-sucedidos em abrir vagas públicas para segmentos que antes eram excluídos ou sub-representados, principalmente por segregação étnico racial ou distância de classe social. Porque as universidades públicas eram do Estado, mas não se destinavam ao povo. Vagas em universidades públicas de melhor qualidade e nos cursos de maior prestígio social eram (e ainda são, em grande medida, apesar das políticas de ações afirmativas compensatórias) destinadas quase que exclusivamente a uma minoria. Quando comecei a formular este argumento, pensava: é injusto alguém, por ter dinheiro, poder comprar o acesso de seus filhos à educação superior pública, excluindo aqueles que não têm posses. Já achava isso terrível, mas depois que tomei conhecimento dos estudos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], com dados oficiais, demonstrando que parte das despesas de educação dos filhos das elites é ressarcida pelo sistema tributário regressivo, verificamos que os brasileiros pobres pagam a educação dos ricos. A injustiça torna-se perversão, uma tripla perversão realmente absurda. Resultado: no Brasil, pessoas são formadas em universidades públicas desprezando o caráter público do Estado, engajadas em projetos individualistas, numa relação muitas vezes até predatória com a instituição pública de educação. Relacionam-se com a universidade pública como o lugar onde vão adquirir ou garantir um futuro profissional, uma carreira pessoal, seu projeto individual ou familiar, sem qualquer construção de solidariedade pelo pertencimento à instituição universitária sustentada pela sociedade. Hoje depois das cotas o perfil racial e social mudou bastante, sem dúvida, apesar da reação de muita gente, mas ainda não temos uma equivalência demográfica nas melhores universidades e nos cursos superiores de maior prestígio social.

COTAS
Em 2012, a lei 12.711 (Lei de Cotas) determinou a reserva de 50% das vagas nas universidades federais e institutos tecnológicos para alunos oriundos integralmente do ensino médio público — sendo metade dessas para estudantes de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio por pessoa. Dentro desse percentual, cada instituição também deve oferecer um mínimo de vagas para pretos, pardos e indígenas, que varia de estado para estado de acordo com a proporção desses grupos étnicos ou raciais na população, a partir dos dados do último censo do IBGE. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

O que propõe o modelo da Universidade nova?

Quando eu era reitor da UFBA, aí por 2006-2007, iniciamos um projeto de mudança da arquitetura curricular e de implantação de abordagens interdisciplinares na formação que se chamou de UFBA Nova. A principal inovação da proposta era criar o bacharelado interdisciplinar — cursos curtos de três anos de iniciação à universidade. Quer dizer, cursos de cultura universitária em que o aluno, independentemente da profissão que escolher, terá uma formação geral capaz de recuperar elementos que foram esquecidos. Por exemplo, estudos clássicos, elementos de grego e latim, história, filosofia, ética, lógica, pensamento matemático, incluindo computação, acrescidos de consciência ecológica, cidadania, política, saúde, qualidade de vida, iniciação científica, e artes, muita arte. Isso tudo foi esquecido na formação universitária no Brasil. O aluno, logo no primeiro ano do curso profissional na universidade, já sabe todas as disciplinas que terá que cursar até o final. Ao final de três anos, o aluno recebe o seu diploma de bacharel em Artes, em Ciências, em Humanidades, em Tecnologias. Assim, a gente terá dado aos alunos que antes foram socialmente excluídos uma chance de, dentro da universidade, ter uma formação científica, artística e cultural e, consequentemente, conseguir que seu potencial seja aproveitado de modo mais equitativo e socialmente mais justo. A proposta cresceu, se expandiu e terminou ganhando esse nome Universidade nova. Nossa iniciativa tinha raiz numa tensão que eu acho que todas as universidades passam, mas a brasileira sofre muito com isso, que é entre o projeto de uma universidade elitizada e a universidade como uma formação para o povo. Os modelos em muitos países no mundo que têm uma diferenciação social muito marcada são assumidamente “torres de marfim”. Então a universidade se torna um lugar isolado, onde as elites de um país vão ser formadas. A história da universidade é muito assim, mesmo em países com forte tradição democrática. Alguns poucos escolhidos chegarão a entrar nessa instituição. A história do Brasil constrói um sistema de educação superior para formar uma elite não universitária. A formação de nossas elites se dá em faculdades e escolas, que é uma variante do modelo de universidade.

Que balanço o senhor faz do Reuni?

Eu disse há pouco que tivemos uma janela de oportunidades perdida. No sistema federal, por exemplo, isso foi o Reuni, destinado à recriação da universidade pública. Foi no fim das contas de menor expressão que o Prouni e o Fies, reforçadores do ensino superior privado. O Reuni foi uma iniciativa que, a despeito das intenções da política governamental, terminou se resumindo em aumento de vagas em cursos que já vinham sendo dados de forma antiga e superada. Oferecer mais do mesmo, mais cursos longos e rígidos, para uma profissionalização hierarquizada, não vai contribuir para democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras.

Reuni

Programa de reestruturação das instituições públicas de ensino superior (IES) instituído em 2007, pelo Decreto 6.096, com a proposta de ampliar o acesso e a permanência na educação superior, no nível de graduação. A meta, de acordo o Ministério da Educação à época, era dobrar o número de alunos nos cursos de graduação em dez anos, a partir de 2008, e permitir o ingresso de 680 mil alunos a mais na graduação das IES.

Prouni (Programa Universidade para Todos)

Oferece bolsas integrais e parciais em cursos de graduação de instituições privadas. Foi criado pelo governo federal em 2004. Segundo o MEC, foram mais de 2,47 milhões de estudantes contemplados até 2018.

Fies (Fundo de Financiamento estudantil)

Programa do MEC instituído em 2001 com o objetivo de conceder financiamento a estudantes em cursos superiores de instituições privadas.

Como os cortes de bolsas e redução do orçamento das instituições federais anunciados pelo governo federal devem afetar as pesquisas e as ciências feitas no Brasil?

Redução de orçamento, num sistema de reduzida autonomia, que praticamente obriga a exclusividade de fontes públicas para financiamento das universidades, significa estrangulamento e desmonte. E corte de bolsas quer dizer matar o futuro, simplesmente porque a reprodução de docentes e pesquisadores precisa de um financiamento prévio para futuros candidatos a repor os quadros da educação superior. A médio prazo, teremos um êxodo de mentes talentosas e dedicadas ao ofício de produzir conhecimento. Na verdade, em alguns setores, esse êxodo já começou. No longo prazo, apagões e crises, culminando com o aumento da dependência política e econômica numa nova ordem internacional que valoriza a ciência, tecnologia e inovação tanto que praticamente induz países como o Brasil a se desaparelhar para ser um player [ator] mundial.

Além dos cortes, estamos no meio de uma turbulência político-ideológica, com a ascensão de teorias negacionistas ou anticientíficas e certo desmerecimento das ciências humanas. Nesse contexto, há lugar para uma universidade que leva em conta as dimensões subjetivas e simbólicas para além de seu valor institucional?

Essa desvalorização, desprezo e até hostilidade à ciência, à arte e à cultura não tem a menor condição de se sustentar. É muita estupidez e truculência de uma só vez. Atacam as liberdades mais valiosas para o desenvolvimento humano. Mas se, infelizmente, lamentavelmente, uma plataforma de barbárie e fundamentalismo como essa se confirmar e se mantiver, não há lugar para a universidade. É por isso que os ataques institucionais, as agressões jurídicas e policiais já começaram. As guerras culturais já estão aí e as universidades são alvos principais, até porque os agressores sabem que a crítica e a contestação são matéria prima da produção de ciência, criação e inovação.

Embora sejam instituições mantidas pelo Estado, as universidades públicas gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão, garantida pela Constituição (artigo 207). Por que garantir a autonomia das universidades é essencial para sua sobrevivência?

Defendo a tese de que a autonomia mítica da universidade do século XIX não mais se justifica. Antes, a instituição universitária se apresentava como vanguarda de uma elite, postulava-se como consciência crítica da sociedade e, por isso, era pouco questionada. O mundo mudou desde então. Hoje a universidade precisa de modo continuado demonstrar seu valor político e social como instrumento necessário ao desenvolvimento econômico e humano da nação. Precisamos recobrar nossa autonomia paradoxalmente engajando a comunidade de modo participativo, para que a sociedade passe a nos cobrar não por normas e regras bem cumpridas, mas por objetivos socialmente relevantes efetivamente alcançados.

Quais desafios estão colocados para as universidades públicas brasileiras na próxima década?

Não podemos ser ingênuos quanto ao papel da universidade pública num contexto social, como no Brasil, onde a educação é um forte fator de promoção das desigualdades e reprodutor da dominação de classes sociais. Isso se agrava na conjuntura brasileira atual, fortemente marcada por ódio e ensaios de opressão. Nesse momento adverso, o maior desafio enfrentado pela universidade pública traz uma aparente contradição: como fazê-la socialmente responsável, reafirmando a qualidade e a competência que a definem como instituição. Este desafio desdobra-se em questões cruciais. Como reforçar a competência científica e artística da universidade e, no mesmo movimento, ampliar vagas públicas em larga escala, abrindo suas portas a segmentos sociais historicamente dela excluídos. Como incutir responsabilidade política na busca constante de autonomia e criatividade e, simultaneamente, fomentar princípios de eficiência e economicidade definidores da gestão pública. Como reafirmar nosso compromisso social e, ao fazê-lo, introduzir os valores de interdisciplinaridade e excelência acadêmica. Para de fato enfrentar a lógica mercantil, a universidade pública precisa ser criativa e eficiente, mantendo sua qualidade, mas não para os herdeiros da elite, se não, vai continuar sendo pública, mas não do povo. Para acolher a massa de excluídos e ter um papel relevante na integração social desses sujeitos, para produzir conhecimento local-regional e ter relevância nos projetos de desenvolvimento nacional, para contribuir para superar esse triste momento de barbárie cultural, desmoralização ética, retrocesso social e desesperança política, a universidade precisa se recriar de fato como Universidade Popular.