Nova ordem mundial incendiou a Amazônia

O drama das queimadas no Brasil e nas suas imediações oferece uma oportunidade para reflexões sobre a questão ambiental em âmbito mundial. As alegações do governo brasileiro de que não há recursos para combater os incêndios revelam muita coisa.

Por Osvaldo Bertolino

A defesa do meio ambiente constitui uma das discussões mais inflamadas que o mundo terá de travar e superar no futuro próximo. A complexidade do assunto começa pela sua definição geográfica. Há quem olhe para o problema como se ele fosse da esfera dos países pobres, ou “emergentes”; e há os que veem a crise sob uma perspectiva mundial e histórica.

A maneira predominante de encarar a questão tem viés indiscutivelmente econômico. Para ela, o problema se limita à definição de uma forma de gerar a maior riqueza possível a partir da escassez de recursos. A ideia-chave seria como empregar o capital, o trabalho e os insumos de modo a obter o máximo de retorno. O papel de ricos e pobres estaria bem delimitado: os primeiros entrariam com a tecnologia transformadora e os segundos com as matérias-primas.

Catástrofe ambiental

Há aqui um primeiro ponto a se considerar. O desenvolvimento econômico dos países é sinônimo do desenvolvimento da eficiência nas sociedades. A história do avanço do homem em direção à prosperidade, desde o tempo em que ele lascava pedras até os dias atuais, em que produz microprocessadores capazes de lidar com informações de forma muito mais rápida que seu próprio cérebro, é a história do esforço humano em empreender de modo cada vez mais eficiente.

A eficiência é, portanto, do ponto de vista econômico, a régua essencial que mede o progresso da humanidade. Se é assim, a relação econômica entre países ricos e pobres precisa ser devidamente dimensionada. O principal elemento desta equação é a tecnologia — segundo o professor titular de filosofia da história da Universidade de Urbino (Itália), Domenico Losurdo – recentemente falecido –, a mãe de todas as desigualdades.

A monopolização dessa ferramenta pelos países ricos é um fenômeno que impulsionou a abertura de novas fronteiras de investimento (China, Índia, Leste Europeu e América Latina, principalmente) — uma combinação que segundo alguns conhecidos propagandistas das virtudes do capitalismo inaugurou uma nova “era de ouro”. ''É um momento histórico importante'', disse ao Wall Street Journal Jeffrey Sachs, renomado professor titular do departamento de economia de Harvard.

Segundo ele, o crescimento econômico mundial, salvo no caso de eclosão de uma guerra ou de uma catástrofe ambiental, está prestes a atingir um patamar invejável. É óbvio que são profecias. E profecias são realmente um problema em assuntos econômicos. Basta lembrar as previsões eufóricas que circulavam às vésperas da crise de 1929.

Época das guerras

Pouco antes, Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa, havia definido o imperialismo como a pretensão de alguns de transformar o conceito de Estado nacional em algo restrito a poucos países centrais. Os demais deveriam renunciar às suas soberanias. Esse sonho imperialista foi parcialmente adiado até o fim do bloco soviético, quando essas poucas nações se tornaram uma só: os Estados Unidos da América. Daí em diante, como explica Losurdo, o cenário mundial passou a ser definido como o casamento definitivo da senhora ''democracia'' com o senhor capitalismo.

Esse sonho de amor, no entanto, é um pesadelo para quem vê o mesmo cenário sob outra perspectiva. Esse é o ponto. Pode-se dizer que, se não chegamos, estamos perto da fase em que a crise se abre em toda a sua potencialidade destruidora. Seria o auge daquilo que Lênin definiu como a época das guerras e das revoluções, iniciada com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917 — e se desdobrou na Segunda Guerra Mundial e nas demais revoluções e guerras de libertação do século XX.

A desintegração do bloco soviético levou ao agravamento da crise econômica mundial, agora sob a égide do projeto neoliberal, e ao transbordamento que promoveu alterações profundas na rotina ideológica tanto nas metrópoles quanto nas regiões periféricas do planeta. Nesse cenário, o meio ambiente aparece com destaque. A situação de dependência de poucas matérias-primas por todas as nações e as dificuldades de provisão de energia e de alimentos remetem o problema para uma discussão literalmente acalorada.

Grandes monopólios

As potências hegemônicas, e principalmente o seu epicentro – os Estados Unidos –, se movem na direção oposta ao entendimento. Elas preferem elevar a tensão nas relações entre nações ou governos, inviabilizando qualquer entendimento pautado pela paz e pela democracia. Esse entendimento seria a forma de dar sentido prático, pelas vias da política internacional, às soluções que os cientistas elaboram a fim de responder aos graves problemas que ameaçam a subsistência humana.

Mas isso seria algo que não se coaduna com os propósitos dos grandes monopólios e oligopólios privados que comandam a dinâmica da economia mundial. Um exemplo disso foi a repercussão dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), órgão da ONU que congrega especialistas de mais de 120 países. O Brasil fez um esforço diplomático, juntamente com Índia, China e México, para pressionar os países ricos a reconhecer que historicamente eles poluíram mais do que as nações “emergentes”.

A intenção era incluir no texto oficial do último relatório do IPCC uma referência atribuindo aos países ricos responsabilidades pelo aquecimento global, um fenômeno que sem dúvida precisa ser visto sob uma perspectiva histórica (o relatório do IPCC afirma que existem tecnologia e recursos para manter as emissões de gases dentro de limites que assegurem um aumento máximo de 2 graus até o final do século).

Ao Brasil e aos demais países pobres, interessava uma medida que levasse em conta concepções regionais e a diversidade do mundo; e ao mesmo tempo contemplasse o conjunto de elementos interdependentes e interativos — basicamente a alimentação, a energia, o crescimento demográfico e a desigualdade no desenvolvimento econômico.

Ordem dos ricos

O problema é que os ricos não choram diante das ruínas que semearam. Ao contrário — se orgulham do que fizeram. E tentam erguer muros em torno de seus limites, deixando, se possível, os “bárbaros” de fora. Sua dominação mundial se dá por meio de uma espécie de rede gigantesca de transações e de negócios, cobrindo os continentes mais do que as nações, ignorando fronteiras e se ligando diretamente aos centros financeiros. Tentam submeter a ONU aos seus ditames e quando não conseguem simplesmente passam por cima da sua autoridade — como fez o facínora George W. Bush para agredir o Iraque.

A ONU é o lugar ideal para o debate sobre o meio ambiente. Suas portas foram abertas a todos os países, que sentam-se como iguais na Assembleia Geral, por meio de esforços gigantescos. É uma conquista que custou muita dor. Foi preciso saltar obstáculos como o status quo imperialista estabelecido pelos Estados Unidos quando sua área de influência foi enquadrada econômica, política e militarmente logo em seguida ao término da Segunda Guerra Mundial.

Com o bloco soviético praticamente contido em suas fronteiras, foi preciso a entrada em cena dos Estados “não-alinhados” para impedir que o círculo imperialista continuasse mantendo as portas da ONU fechadas para uma grande quantidade de nações. Esse passo democrático é produto da história, da luta de classes.

Em seu recinto, o confronto das duas ordens do mundo passou a ter lugar: de um lado, a ordem dos ricos, com a aparência de legalidade que lhes conferem o longo uso do poder, a tradição e a violência; de outro lado, a ordem de um direito que nasceu da luta contra a opressão. Lá se define com clareza o confronto maior da nossa época, da nossa civilização. Numa imagem: se cada um tratasse bem de sua árvore, em pouco tempo teríamos uma floresta verdejante, viçosa, renovada.

A iniciativa de tratar o assunto como foi tratado na ONU é um contraponto às versões que rodam o mundo, por meio dos monopólios privados de comunicação, que imputam aos países pobres a responsabilidade pelo problema e reivindicam o controle internacional dos redutos ecológicos. É comum ler e ouvir, por exemplo, que é uma perigosa ironia a Amazônia, última e maior reserva da vida no planeta, estar sob a guarda do Brasil e dos brasileiros.

Colonos paupérrimos

Dizem que as florestas tropicais e equatoriais teriam um futuro bem mais tranquilo se estivessem sob jurisdição estrangeira. É claro que há nisso uma contradição flagrante: os problemas ecológicos são um fenômeno de sociedades industriais. De modo geral, a história mostra que uma sociedade só se torna verde depois que aniquila todo o verde que tinha à sua volta. É assim com os Estados Unidos, cuja voracidade em relação ao meio ambiente, desde suas origens como nação, não tem par. É assim, também, com a Europa e com o Japão.

A constatação dessa contradição não deve, evidentemente, causar nos brasileiros um dar de ombros, como se não nos restasse alternativa senão destruir o meio ambiente para crescer. Só porque em vários países o desenvolvimento ocorreu à custa do quase esgotamento dos recursos naturais, não significa que precisamos incorrer no mesmo erro. Ao contrário: esse quadro dá ao Brasil a chance de aperfeiçoar a experiência de crescimento de boa parte das economias industriais e realizar um desenvolvimento econômico pujante e compatível com a preservação ambiental.

É óbvio que o Brasil precisa acabar, e logo, com as condições subdesenvolvidas às quais o país está submetido. Não é aceitável, por exemplo, o descaso com a urgência da demanda energética brasileira. Não se pode questionar a importância de uma usina como Itaipu. Não precisávamos, no entanto, ter alagado Sete Quedas, fazendo elas sumirem do mapa, para termos a energia que passou a ser gerada ali.

Com um pouco menos de obtusidade política e um pouco mais de consciência ecológica, poderíamos ter todos os quilowatts de Itaipu e ainda teríamos aquela que era uma das pérolas do turismo no planeta. É a falsa contradição entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico, que ainda hoje fomenta o discurso vil de muitos planejadores, líderes políticos e empresários no país.

Da mesma forma, a Amazônia precisa de cuidados. A vida dos colonos paupérrimos que profanam a floresta para ter o que comer precisa ser melhorada urgentemente. Não é aceitável, numa nação civilizada, que eles perpetuem a agricultura de subsistência — talvez a atividade econômica mais primitiva do homem.

Lei e cadeia

Ao mesmo tempo, é preciso determinar que a floresta não é lugar de fazendeiros. Nem de garimpo. Nem de lavouras. Nem de rebanhos. Nem de madeireiras. Nem de empresas praticando extrativismo predatório, que possuem milhares de quilômetros quadrados na região. A floresta está a cada dia menor, mais vilipendiada, entregue a grileiros e oportunistas de todo naipe. Isso tudo é resultado do desenvolvimentismo autoritário da ditadura militar, que enxergava na Amazônia uma enorme seara para suas aventuras grandiloquentes.

Nos anos 1970 e 1980, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Junto foram aventureiros que viram nesse gesto dos governos militares a oportunidade de expandir suas fronteiras latifundiárias para o norte do país — cortando árvores e destruindo ecossistemas mais antigos do que a própria humanidade para plantar soja e criar gado.

Grande parte dos que foram para lá atrás de terra acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e sobrevivem do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio atrás de minerais preciosos.

O governo do presidente Jair Bolsonaro, em lugar de combater esse cenário deplorável, incentiva as atividades dos fora-da-lei que hoje dominam vastas regiões improdutivas na região, a quem caberia uma sentença básica: rua! Lei e cadeia! A questão se resume à forma como o Brasil lida com este cenário. Há o problema da propriedade da terra. E do controle da tecnologia. E da definição das regras para as atividades econômicas no campo. E da predominância da ideologia antinacional e contrária aos interesses do povo. E etc.