A tragédia da Ponte Rio-Niterói e o chacal do governador Witzel

O sequestro e a morte do sequestrador no Rio de Janeiro merecem reflexão filosófica sobre civilização e barbárie, o crime e os criminosos que dizem combater a violência.

Por Osvaldo Bertolino

Violência Policial

A comemoração do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ao descer do helicóptero no local em que o sequestrador de um ônibus identificado como William Augusto da Silva foi alvejado pela polícia, na Ponte Rio-Niterói, sob aplausos, é a imagem da boçalidade. Foi um culto à cultura da arma como símbolo de poder, uma comemoração como se ele estivesse no estádio do Maracanã depois de um gol.

Uma coisa é o procedimento policial, razoável diante da situação criada pelo sequestrador, outra é a atitude tresloucada de Witzel. Seu gesto é a afirmação de que matar alguém é algo banal. Inebriado pelo show midiático da tragédia, o governador extravasou a sua ideologia da violência que vitima tanto culpados como Willian Augusto da Silva quanto inocentes, como Marielle Franco.

Bête humaine

É a constatação de que a vida vale muitíssimo pouco no Brasil governado por essa gente truculenta. Um incentivo ao caminho do tiro, da facada, das ações e reações violentas em detrimento de um comportamento civilizado. É a ideia de que a violência sempre existiu e sempre existirá no convívio humano, a prevalência do chacal adormecido em cada homem, nas palavras de Charles Darwin.

Criticar atitudes bestiais como a de Witzel não significa resignação ao caos e muito menos complacência com criminosos. Significa, sim, enxergar o homem de uma forma menos idealizada. O historiador gaúcho Décio Freitas sugere que o desafio para a humanidade tem sido "criar uma (…) ordem civilizada, um universo racional e justo, capaz de transformar a bête humaine em ange humaine".

O caminho do governador é o de volta pelos quilômetros que a humanidade já andou para se civilizar, desde os tempos em que vivia para imolar os inimigos, a lógica da bête humaine, que deixa desobstruída a tendência de alguns de brutalizar seus atos, de exterminar semelhantes (poucas espécies animais o fazem), de agredir aquilo que não entende ou tolera. A diminuição da violência, o controle do chacal, passa pela admissão de uma lógica que lhe seja oposta.

Coração mole

Por trás da ideia de que uma tragédia evita outra está a máxima "bandido bom é bandido morto". Ora, se é verdade que a única redenção possível para o criminoso é a morte, a maneira mais eficiente de fazê-lo é liquidá-lo o quanto antes. A própria polícia poderia dar conta da tarefa. Economizaria o aparato e, de quebra, nem precisaria mudar muito o modo como as coisas têm sido feitas.

A questão não se resume à dicotomia entre os que têm coração mole e os que não têm coração. Ela passa pelo Estado de Direito, um projeto racional de organização social, a um só tempo produto da civilização e mecanismo político da sua garantia. O Estado não pode funcionar pelo impulso de um momento de dor ou de revolta. Ou seja: não pode atuar movido por emoções individuais. Por mais naturais e compreensíveis que sejam esses sentimentos, eles não podem ser institucionalizados. O Estado precisa ser equilibrado. Ímpetos não podem virar leis.

O pano de fundo desse cenário é a tolerância, o viés humanista, as forças da civilização. A alternativa a tudo isso é a barbárie. O argumento de que é justo autorizar um a matar para impedir que outro cometa atrocidades, como o Projeto de Lei do ex-juiz fora da lei e ministro da Justiça Sérgio Moro que propõe instituir a excludente de ilicitude para autorizar a política a matar mais do que já mata, não se sustenta. Não há a menor justiça na justiça feita com as próprias mãos. Nem mesmo quando é o aparato estatal o autor da desforra.

Curto-circuito

O Estado não pode jamais abdicar da civilização e jogar pelas antirregras da barbárie. É importante compreender que justiça não é vingança e que vingança não é justiça. Segundo o filósofo Paul Ricoeur, um dos mais importantes pensadores franceses do século XX, a função do Estado é atuar como o terceiro elemento, neutro, em um litígio, e estabelecer "uma justa distância entre a transgressão que desencadeia a cólera privada e pública, e a punição infligida pela instituição judicial".

Enquanto a vingança estabelece um "curto-circuito entre dois sofrimentos, o suportado pela vítima e o infligido pelo vingador", a justiça "interpõe-se entre os dois, instituindo a justa distância" entre agressor e agredido, sob a égide da lei. Somente o Estado de Direito colocado nesta posição imparcial, segundo Ricoeur, pode gerar justiça. Ou seja: levar ao restabelecimento do direito, da ordem quebrada pelo crime.

A sentença, para Ricoeur, ao transformar a punição em palavra, constrói a justa distância entre o crime e o seu castigo. A sanção, ancorada na lei, quebra o moto-contínuo de violência entre eles. E assim dirime a vingança, a tentação à barbárie, à truculência, que de outro modo se reproduziria ad infinitum entre vítima, criminoso e vingador.

Direito à vida

Esse raciocínio confirma que a antirregra do "olho por olho, dente por dente" é coisa afeita ao tempo dos clãs, quando não havia Estado de Direito, lei ou justiça. Imperava a lógica da vingança. Quem matava morria, quem mutilava era mutilado. Uma realidade anterior à civilização, em que reinava o caos.

No Estado democrático, a punição que se inflige a um criminoso não é devida à vítima. Ela é devida à lei. Ou melhor, segundo Ricoeur: é "devida à vítima porque devida à lei". Pensar no Estado como um veículo de vingança — ou que chancela a vingança — e não de justiça é sistematizar o linchamento.

A grande questão que se impõe, e que ajuda a definir o estágio de civilização de uma sociedade, é que o direito à vida deve ser garantido inclusive para quem o violou. Um assalto não se torna legal por ser praticado contra um ladrão. Com o homicídio, dá-se o mesmo. O ato de matar não se torna correto por ser praticado contra quem matou.