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Há 30 anos, a música popular brasileira perdia seu maluco mais beleza 

Em pouco mais de duas horas, o documentário O Início, o Fim e o Meio (2012), de Walter Carvalho, mostra as várias faces da metamorfose ambulante de uma obra singular, que não perde a atualidade mesmo 30 anos após a morte do maluco mais beleza e genial da música popular brasileira. Foi num dia 21 de agosto, há três décadas, que perdemos Raul Seixas (1945-1989).

Por Marcos Aurélio Ruy

Raul Seixas

“Controlando a minha maluquez / misturada com minha lucidez / Vou ficar, ficar com certeza / maluco beleza”, canta o artista baiano em uma de suas composições mais conhecidas. Raul ganhou corações e mentes de uma juventude ávida de sair de rótulos, dos quais ele próprio fugia como o diabo foge da cruz.

Sucumbiu ao alcoolismo em 21 de agosto de 1989, aos 44 anos, mas sua legião de fãs não para de crescer, mesmo com o ostracismo a que a mídia comercial relegou sua obra. Carvalho capta todo esse clima ao mostrar a vitória do artista contra o establishment, a censura e o preconceito. Vitória, porque sua obra sobrevive nos corações e mentes de todos os “malucos belezas” espalhados por todo o território nacional. Todas as pessoas que acreditam na arte e na cultura como uma das formas de se contrapor ao sistema capitalista e opressor.

Assista ao documentário O Início, o Fim e o Meio


 

Tanto que o cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro fez a música Toca Raul. Como ele próprio conta, sempre em seus shows alguém da plateia gritava a frase. “Mal eu subo no palco / Um mala um maluco já grita de lá / –Toca Raul! / A vontade que me dá é de mandar / O cara tomar naquele lugar / Mas aí eu paro penso e reflito como é poderoso esse Raulzito / Puxa vida, esse cara é mesmo um mito”, canta Baleiro.

O título do documentário remete à canção Gita, onde Raul e Paulo Coelho diz que Gita é “o início, o fim e o meio”. E vai além: “Eu sou a mosca da sopa / E o dente do tubarão / Eu sou os olhos do cego / E a cegueira da visão”. Essa questão de enxergar o mundo de uma outra forma também está presente em Como Vovó já Dizia. Por causa da censura, Raul escreveu “Quem não tem colírio, usa óculos escuros / Quem não tem filé, como pão e osso duro / Quem não tem visão, bate a cara contra o muro”. Genial.

A poesia original, porém, diz: “Quem não tem colírio, usa óculos escuros / Quem não tem papel dá o recado pelo muro / Quem não tem presente se conforma com o futuro”. Ainda mais genialmente explícito. Ácido puro.

Não menos ácida, Ouro de Tolo arrebenta com a hipocrisia. Desanca com o sistema que nos leva a querer se dar bem, muitas vezes a qualquer custo, sem se importar com a vida das pessoas. Tremendamente atual. “É você olhar no espelho / Se sentir / Um grandessíssimo idiota / Saber que é humano / Ridículo, limitado / Que só usa dez por cento / De sua cabeça animal”.

Não contente, dá um chute no descaso de parte de uma elite carcomida com sua obra. “E você ainda acredita / Que é um doutor / Padre ou policial / Que está contribuindo / Com sua parte / Para o nosso belo / Quadro social”. Bolsonaro certamente vetaria.

Mas Raul não se conforma e ataca o conformismo e a mesmice. “Eu é que não me sento / No trono de um apartamento / Com a boca escancarada / Cheia de dentes / Esperando a morte chegar”. Para anunciar no O Trem das 7, canta ele: “Ói, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem / Ói, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon / Ói, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem / Ói, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem / Quem vai chorar, quem vai sorrir? / Quem vai ficar, quem vai partir?”.

Que o trem do Raul Seixas chegue lotado do desejo de transbordar em sentimento para construir o novo sobre as cinzas do retrocesso que vivenciamos em pleno século 21. Vamos todos ficar malucos belezas e levar a mensagem de construção do mundo novo, solidário e justo.

E sempre tem a chance de recomeçar com em Tente Outra Vez. “Não diga que a canção está perdida / Tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, porque “nada acabou” e “não pense que sua cabeça aguenta se você parar”… Nada mais atual.

Trinta anos sem a metamorfose ambulante do maluco beleza da MPB justificam a efeméride. Principalmente porque Raul Seixas é o cara da contestação, que trilhou um caminho próprio, não se enquadrou e brilhou com sua arte despojada e popular.