Neste 19 de agosto, o calendário aponta o nascimento de um dos imortais do Brasil. Joaquim Nabuco, primeiro diplomata brasileiro em Washington, com uma cultura, inteligência e sensibilidade que honram até hoje o nosso povo, tem seu aniversário no mesmo dia e tempo em que um indivíduo sem qualificação deseja ocupar o posto de embaixador nos Estados Unidos. Estes tempos de Bolsonaro são assim: um escarro na memória do Brasil.
Por Urariano Mota*
Publicado 18/08/2019 21:18 | Editado 13/12/2019 03:29
Mas não nos percamos com o mal que estas trevas fazem à gente hoje. Melhor recuperar o texto que escrevi no Dicionário Amoroso do Recife para o nosso genial pensador e homem público.
Quando se completaram os cem anos da morte de Joaquim Nabuco, muitos artigos e reportagens foram publicados na imprensa. Em quase todas as matérias, o destaque se fez ao papel do homem liberal, do personagem olímpico, ilustrado, de Quincas, o belo. Nas breves menções às ideias mais radicais de Nabuco, houve um pulo rápido para o conceito de “homem complexo”, o que poderia ser manipulado à direita, à esquerda, ou não, como as infindas interpretações de um texto cabalístico.
Entre os artigos comemorativos, num esforço máximo de não difamar uma vez mais a história, pudemos ver um perfil bonito do abolicionista nascido no Recife. Mas à maneira de apresentação de um artista de telenovela. Cito um trecho eloquente:
Notem que as coisas mais graves foram escritas assim, entre amenidades e atualizações que vulgarizam ou difamam. A paixão de Nabuco pela causa abolicionista, como uma extensão de galã de filme capa-e-espada (Stewart Granger em Scaramouche?), não se deveria fazer, pois não é justo que ele se destaque pelo obscurecimento de homens tão fundamentais quanto Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, José Mariano. Homens, enfim, talvez menos belos e apurados no vestir, mas cheios de amor e entrega absoluta à igualdade das gentes. Mais, pior: dar a entender que a abolição formal da escravatura se realizou pelas mãos delicadas e puras do homem que despertava o furor feminino. Menos telenovela açucarada seria bom.
E, no entanto, notem, o perfil panegírico, ou, mais sério, uma atualização da grandeza de Nabuco não exigiria tais anestesias desviantes. Ele, as suas ideias, o seu pensamento radical, a sua visão de futuro, a percepção aguda do Brasil até hoje não superada, está no que escreveu, na belíssima e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos:
Quem anda pelo interior do Brasil, aquele que muitos chamam de Brasil profundo, quem vê as pacientíssimas filas de doentes sob a chuva nas cidades, sabe o quanto Nabuco acertou.
Ou então aqui:
Quem vê a quantidade de negros, mais ou menos negros e mestiços nos presídios sabe. A obra da escravaria não acabou.
Ou mesmo:
Que definição bela e definitiva da dialética entre escravos e senhores! Quanta precisão do que diminui, do que avilta a pessoa no jogo e conflito entre o machucado e o machucador.
Em Joaquim Nabuco se integram em um só corpo a ética e a estética. Mas isso não está bem no perfil físico do Belo Quincas de 1,86m. Está em linhas lapidares em que o pensamento dá um salto, ilumina como um raio uma situação que todos julgavam conhecida, mas que se vê concreta pela primeira vez quando escrita. Isso porque Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. A divisão estúpida e burra que dá aos ficcionistas o grau único de escritores, aqui, em Nabuco, comete o seu maior crime. Pois ele é aquele que gravou esta profecia, que todo homem é obrigado a carregar:
Desse desertor da sua casta, da sua classe, da sua raça, como o percebia Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico do Brasil que continua urgente. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravaria, nos campos, nas cidades. Para esse verdadeiro Quincas, nada mais próprio que o seu pedido ao médico, no último leito:
Sorte nossa que ele não a perdeu. A sua consciência ficou nas linhas, no traço da criança de 8 anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Mais que belo, Quincas ficou eterno.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.