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São Paulo homenageia Tebas, o escravo que virou arquiteto no século 18

O Largo da Misericórdia é hoje um local de passagem no centro de São Paulo. No Brasil colonial, contudo, havia ali um chafariz onde se ia buscar água para as casas e à beira do qual davam-se também encontros e conversas. Possivelmente, ali se falasse do artesão que lavrara a fonte, um negro que conhecia a arte da cantaria, de apelido Tebas.

Por Francesca Angiolillo

Tebas

Com a canalização da água, no século 19, o chafariz foi transferido para o largo de Santa Cecília, como registra o arquiteto e historiador Carlos Lemos, para servir talvez como bebedouro de cavalos. Lá ficou até a Primeira Guerra, sendo depois desmontado e esquecido. No largo onde em 1792 ele se ergueu, porém, a partir desta semana se inscreve o nome de Joaquim Pinto de Oliveira Tebas (1721-1811).

É dedicada a ele uma das 25 primeiras placas do projeto Memória Paulistana, iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura que antecede a Jornada do Patrimônio. O evento terá, neste fim de semana, 500 pontos de atividades, entre visitas a monumentos, oficinas e passeios guiados.

Dentro da programação deste sábado (17), às 15 horas, Tebas será um dos personagens do Grande Cortejo da Memória Paulistana, no qual atores darão vida a figuras históricas. A edição deste ano é a maior desde o início do evento, em 2015, com mais de 500 pontos de atividades. No cortejo, que naturalmente passa pelo largo da Misericórdia, Aílton Graça fará o papel do artífice.

O termo, aliás, já não cabe. Em março do ano passado, Tebas foi considerado oficialmente arquiteto pelo sindicato estadual da categoria, conforme conta o escritor e jornalista Abílio Ferreira. Autor do texto da placa no largo da Misericórdia, Ferreira é organizador de Tebas – Um Negro Arquiteto na São Paulo Escravocrata (Abordagens). Ele contribui para o volume, lançado neste ano, com uma cronologia. Como é natural, tratando-se de um escravo no século 18, “é uma história feita mais de vestígios do que de confirmações”, diz.

O primeiro senhor de Tebas foi o mestre pedreiro português Bento de Oliveira Lima. Radicado em Santos, esse artesão passou a ser solicitado para trabalhos em São Paulo. Então construída em taipa de pilão, a cidade carecia do conhecimento de quem soubesse trabalhar a pedra, que era de uso comum na cidade litorânea, para decorar as fachadas de igrejas mais ricas.

Dos quatro artífices escravizados em posse de Lima quando de sua morte, em 1769, Tebas era o mais valioso, o que seria indício de seu talento. No inventário do patrão, valia 400 mil réis, enquanto cada um dos demais, 100 mil. Entre as muitas obras para as quais o mestre passou a ser requisitado estava a reforma da velha catedral da Sé, que deixou inacabada ao morrer e foi concluída por Tebas.

Para saldar dívidas, a viúva de Lima teve de dispor de bens; interessado em concluir a fachada da Sé, seu arcebispo, Matheus Lourenço de Carvalho, ficou com Tebas. Foi ele quem, em meio a um processo contra a viúva, concedeu-lhe a alforria, entre 1777 e 1778.

Para Abílio Ferreira, o aspecto que sintetiza a importância de Tebas é o fato de que seu trabalho tocou os três vértices da região do centro hoje chamada Triângulo Histórico: as sedes dos beneditinos, dos carmelitas e dos franciscanos. Documentos registram a contratação de Tebas para lavrar, em 1766, a pedra fundamental da antiga igreja do mosteiro de São Bento; essa pedra teria sido recuperada em 1911, quando da demolição que deu origem à atual sede.

Na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, ainda se podem ver os arcos talhados por Tebas – a igreja, na Av. Rangel Pestana, não foi incluída no trajeto de sábado, mas fica bem próxima do início dele. Tebas terá sua apoteose no largo São Francisco, em frente à Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, de fachada por ele adornada.

A bateria da escola de samba Vai-Vai tocará um trecho do samba composto em sua homenagem por Geraldo Filme (1927-1995), para o Carnaval de 1974 da escola de samba Paulistano da Glória. O sambista foi um dos primeiros a resgatarem a história de Tebas fora da academia, e o enredo ainda trazia imprecisões mais tarde esclarecidas.

Além dos resquícios no centro, Tebas foi autor também do cruzeiro franciscano de Itu, ainda existente. Por poucas que sejam suas marcas, para Ferreira é importante o resgate de sua figura. “Por uma série de circunstâncias, ele assumiu as rédeas do destino dele, quando um negro escravizado só era dono dos próprios pensamentos.” Para o pesquisador, Tebas teve notoriedade ainda em vida, em meio à população escravizada da época.

Uma prova disso, diz, seria o apelido. Mais do que acreditar na versão que atribui a alcunha a uma associação com a astúcia demonstrada por Édipo ao decifrar o enigma da esfinge de Tebas, Ferreira prefere resgatar a hipótese africana. Tebas, explica, é uma palavra do quimbundo, idioma falado pelos negros bantos, um dos grupos mais populosos de escravizados no Brasil. “Ele ganha esse apelido do povo; quem ia buscar água no chafariz era o povão”. Em quimbundo, “tebas” significa alguém de grande habilidade.