Livro: a contribuição de Maria da Conceição Tavares à economia

Tida como uma das 4 mulheres entre os 100 economistas heterodoxos mais importantes do século 20, Conceição Tavares trouxe imensa colaboração teórica e empírica ao processo de desenvolvimento das economias latino-americanas, em especial da brasileira.

Por Fernando Nogueira da Costa*


capa do Livro Maria Socorro Tavares

Ao (re)fazer uma leitura da influência das ideias econômicas e sociais latino-americanas na formação teórica de Conceição Tavares, percebemos sua inserção diferenciada no debate público brasileiro. Não foram poucas as contribuições teóricas do estruturalismo ao pensamento de Conceição Tavares. Começando pelo método histórico-estrutural de análise, passando pelo desafio do desenvolvimento econômico na periferia, atingiu:

1.o repúdio à visão de automatismos do mercado para se percorrer a via do desenvolvimento,

2.a ideia de estilo distinto de desenvolvimento em economia periférica, e

3.o papel das empresas transnacionais na dinâmica do sistema capitalista mundial.

Coletânea de textos de Maria da Conceição Tavares

Posteriormente, a autora adicionará ao método histórico-estrutural a sua chamada Economia Política, apoiada em Marx, Keynes, Kalecki, Steindl e Schumpeter, para analisar a dinâmica e o processo da acumulação de capital no Brasil. Na Escola de Campinas, nos anos 1970, ela reverá muitos pontos discutidos no âmbito da Cepal.

Em auto subversão da própria ideia de “estrangulamento externo”, a terceira contribuição de Conceição Tavares à análise da natureza do crescimento brasileiro incorpora um esquema de reprodução kaleckiano capaz de descrever os mecanismos endógenos do processo de acumulação de capital no Brasil. Embora fosse ainda uma industrialização restringida por implantação parcial dos departamentos industriais, o processo de crescimento brasileiro já continha elementos em comum com o processo de crescimento verificado nos países desenvolvidos.

A existência incompleta do setor de bens de capital tinha levado o ciclo ao auge, seguido de sua reversão, dado o papel central do investimento à frente da demanda. Os auges cíclicos (1957-1962 e 1967-1973) tinham sido intensos, mas curtos, fadados ao rápido esgotamento, porque o porte do departamento produtor de bens de capital era insuficiente para atender à demanda agregada. Os lucros se multiplicavam, mas, para a realização, os investimentos tinham de se acelerar continuamente. A elevação da relação capital / produto em certo ponto contrapunha as decisões de investimento com a ociosidade da capacidade produtiva.

Na tese de livre-docência defendida em 1974, Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil, o tema da dinâmica da industrialização brasileira é retomado e aprofundado com uso de conceitos de autores como Marx, Keynes, Schumpeter, Kalecki e Steindl.

As características de “padrões de acumulação” se referem às formas alternativas de auto-organização capitalista. Emergem das taxas diferenciadas de crescimento dos diversos setores da economia e através de formas de competição neles vigentes, cada qual dependente da particular distribuição de renda.

Conceição Tavares adota o conceito de industrialização retardatária, discutido durante a elaboração da tese de doutoramento do colega João Manuel Cardoso de Melo. Era uma alternativa à visão cepalina e às Teorias da Dependência, tanto à de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, quanto à de Rui Mauro Marini e André Gunder Frank.

Distingue entre processo industrial e implantação de indústrias isoladas. Defende a tese de a instalação de um setor de bens de produção, em especial, de bens de capital, ter o potencial de internalizar, ao menos em parte, os principais determinantes da dinâmica econômica, tanto o financiamento do investimento, quanto o progresso técnico.

Propiciaria a constituição de forças produtivas especificamente capitalistas. Se não houvesse produção interna de bens de capital, os efeitos multiplicadores do investimento seriam exportados e a economia se manteria dependente do comércio exterior, inclusive para a introdução de inovações em maquinaria. Portanto, para a industrialização se completar, a dinâmica econômica não poderia ser apenas reflexa da demanda externa.

A industrialização retardatária norte-americana, alemã e japonesa levou à predominância de escalas de produção elevadas e estruturas de mercado oligopolizadas na economia mundial, em vários setores fundamentais, inclusive o de bens de produção. Daí os problemas enfrentados por economias periféricas quanto à centralização dos capitais necessários, à obtenção de tecnologia, e ao enfrentamento da concentração dos mercados.

A industrialização só se daria, em capitalismo tardio, com concurso do Estado para articulação dos interesses e atração do capital necessário, inclusive o estrangeiro. Mas a industrialização foi “restringida”, no Brasil, até a implantação do Plano de Metas, embora houvesse a implantação de algumas empresas de bens de produção – menos de bens de capital e mais de bens intermediários – desde os anos 30.

O desenvolvimento das forças produtivas e a infraestrutura urbana eram insuficientes para implantar a grande indústria de base necessária ao crescimento da capacidade produtiva adiante da própria demanda. Só assim evitaria periódicos estrangulamentos setoriais. A implantação de um departamento de bens de produção significativo exigia a ocorrência concentrada no tempo de um bloco de investimentos complementares.

Com essa reinterpretação da história econômica brasileira, realizada pela série de teses e dissertações defendidas na UNICAMP e na UFRJ, nos anos 70, houve a revisão da interpretação anterior do processo de substituição de importações. Os determinantes oriundos dos estrangulamentos externos passaram a ser considerados menos relevantes e foi conferido maior peso à dinâmica endógena da acumulação de capital.

O novo aparato teórico reunia os determinantes relativos às formas de concorrência (microdinâmica) e às categorias de uso dos bens (macrodinâmica) no exame do ciclo iniciado com o Plano de Metas, do desequilíbrio setorial, do processo aí desencadeado, e de como seria difícil manter as altas taxas de crescimento naquelas circunstâncias. Em trabalho posterior, o período de 1966 a 1974 foi analisado com a utilização e o aperfeiçoamento do mesmo instrumental teórico-analítico.

Alguns analistas de sua obra enfatizam os fundamentos teóricos. Para compreender a industrialização no Brasil, privilegiando os aspectos endógenos da acumulação de capital, Tavares vale-se do princípio da demanda efetiva. Para ela, as economias não enfrentam problemas do lado da oferta, e sim pelo lado da demanda, quando se caracteriza uma situação de “insuficiência da demanda efetiva”.

Tavares destaca o aspecto crucial da demanda efetiva ser o investimento enquanto instrumento de expansão da capacidade produtiva e da acumulação de capital. Entre as variáveis de gasto é importante também o consumo capitalista, como enfatizado por Michael Kalecki. Ele tem um papel a desempenhar na realização dos lucros no processo de acumulação.

A utilização do esquema de três setores de Kalecki é funcional para explicar a interpretação de Tavares do “crescimento desequilibrado”. Essa ideia tornou-se a base da nova visão da autora sobre a dinâmica cíclica da industrialização brasileira, presente em suas teses de Livre-Docência e Titular, defendidas respectivamente em 1974 e 1978.

Se o crescimento do DI e do DII superar o crescimento do DIII, os lucros por definição superam os salários enquanto custos, mas se ressentem da demanda propiciada pela massa salarial. Resulta em uma expansão da capacidade produtiva em ritmo superior ao do crescimento da produção e da renda corrente. Isto gera uma queda no grau de utilização da capacidade produtiva. Esta, por sua vez, pode induzir a uma queda na taxa de investimento, implicando aumento de capacidade ociosa por toda a economia e, por consequência, queda dos lucros.

Quanto ao processo de oligopolização da estrutura industrial, uma tendência de longo prazo, Tavares utiliza como referências microeconômicas:

i)o oligopólio puro ou concentrado a la Steindl e Bain,

ii)a competição com base em inovações tecnológicas a la Schumpeter,

iii)o oligopólio diferenciado a la Sylos-Labini, e

iv)a articulação oligopólica com hegemonia do capital financeiro a la Hilferding.

A partir de sua interpretação da obra de John Maynard Keynes, Tavares ganha convicção quanto à impossibilidade de autorregulação da economia capitalista. A incerteza no horizonte de cálculo capitalista implica ressaltar o papel determinante e instável do investimento na dinâmica capitalista. Está baseado no princípio da demanda efetiva: variáveis de gasto determinam variáveis de renda.

Se, de um lado, o investimento é a variável estratégica determinante da demanda agregada, de outro, é o principal elemento de instabilidade do capitalismo. Os fatores determinantes do investimento, entre outros, as expectativas dos agentes acerca de um futuro incerto, são incapazes de garantir uma trajetória estável a essa variável.

-Se crescer demais, não se pode manter, porque termina por gerar capacidade ociosa, e ela deprime a taxa de rentabilidade do capital, tanto a efetiva como a esperada adiante.

-Se crescer de menos, tampouco pode manter-se, porque não gera renda suficiente para comprar a própria produção ampliada.

Com base no princípio da demanda efetiva, Tavares afirma não se sustentar a ideia de “insuficiência de poupança” para explicar as flutuações do investimento. O desenvolvimento do sistema de crédito, ao exercer papel fundamental no financiamento do investimento, faz com a poupança, isto é, a renda não-gasta registrada ex-post, não seja determinante para a realização do investimento.

Em sua abordagem, a poupança jamais “determina” o investimento, apenas possui uma equivalência contábil com o mesmo. A relação de determinação causal deve ser entendida a partir do investimento (gasto) para a poupança (renda não-gasta), e não o contrário, como é apresentada convencionalmente.

No financiamento do investimento, os capitalistas não podem contar apenas com suas “poupanças prévias acumuladas”, ou melhor dito, seu estoque líquido de riqueza. Eles precisam também do crédito de sistema financeiro. Este deve ser capaz de captar o dinheiro disponível das firmas ou das famílias sob forma de investimentos em ativos financeiros. Essas formas de manutenção de riqueza permitem a valorização fictícia do capital por juros compostos. Ele é tanto maior quanto mais desenvolvidas forem as relações financeiras de dada economia.

Somente uma parcela dos ativos financeiros é, de fato, “ativa”. Corresponde à “dívida primária nova”. Ela se destina a financiar o setor produtivo da economia. A remuneração desse capital financeiro é paga com os juros. O setor financeiro apropria de parte do valor agregado na produção. Mas os empréstimos só serão efetivamente amortizados uma vez maturados os investimentos – e se os lucros forem realizados. A dívida, portanto, precede o investimento.

Ainda com base em Keynes, Tavares trata da questão da crise de crédito. De acordo com a leitura de Possas (2010) de sua obra, surge quando há queda do investimento e redução dos lucros. Passa a ser difícil remunerar os juros das dívidas primárias. Leva à depressão do capital produtivo.

O grande problema do endividamento, segundo a autora, é o fato de ele preceder a geração da renda e seu componente de lucro. A sustentação dos lucros requer os investimentos produtivos crescerem de modo a multiplicar a “parte ativa do capital”, aquele dinheiro relacionado ao financiamento da produção, do investimento e do consumo.

Se os investimentos declinarem e, por consequência, os lucros esperados não se realizarem, o peso da “parte passiva do capital”, isto é, do endividamento, se eleva proporcionalmente ao retorno. Deprime ainda mais o movimento real do capital produtivo. Nesse sentido, a queda no nível dos investimentos é a explicação, em última instância, da reversão do ciclo.

Na visão de Keynes, de acordo com a leitura de Tavares, a crise decorre não de uma elevação da taxa de juros, em virtude de necessidade de elevação do prêmio para se abandonar a liquidez, dado um aumento da preferência pela liquidez. Nasce sim do colapso da eficiência marginal do capital. Avaliações pessimistas e a incerteza em relação ao futuro fazem a retomada da confiança nos negócios ser algo de difícil gestão em uma “economia de livre-iniciativa”.

Enquanto as expectativas quanto às resultantes do investimento forem otimistas, o endividamento para a alavancagem financeira da rentabilidade patrimonial sobre o capital próprio continua. Caso elevações na taxa de juros diminuírem a rentabilidade esperada, os investimentos declinarão (e com eles a renda multiplicada), tornando-se insuportável a carga da dívida. Então, a crise financeira se manifesta, aumentando ex-post a preferência pela liquidez dos agentes.

A elevação do investimento leva ao crescimento do produto. Por sua vez, este levará a crescimentos adicionais do investimento, cujos impactos adicionais só diminuirão conforme diminuir a multiplicação da renda em ajustamento com caráter cíclico.

O coeficiente da aceleração é a relação entre variações no investimento provocadas por variações nos gastos dos consumidores. Mas a tragédia capitalista decorre de o investimento crescer aceleradamente à frente da demanda futura prevista. Gera capacidade produtiva superior à capacidade de consumir toda a renda multiplicada, inclusive pela necessidade de parte dela ser estocada em investimentos financeiros para a aposentadoria e/ou a herança. Então, os gastos não a ocupam plenamente. A capacidade produtiva ociosa deprime o investimento.

Um contínuo aumento de renda pode induzir à elevação do gasto em consumo e daí à maior utilização da capacidade produtiva. Quando a capacidade produtiva se esgota, cria-se incentivo para ser aumentada por meio de novos investimentos.

A dedução é a necessidade de o crédito ao consumo acompanhar o ritmo do crédito ao investimento. A alavancagem financeira não pode correr muito à frente da capacidade de gasto em consumo, seja dos capitalistas, seja dos assalariados, sob o risco de gerar excesso de capacidade produtiva e, em consequência, virar para recessão.

O Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e a Fundação Perseu Abramo editaram uma coletânea com uma seleção de textos da Professora Maria da Conceição Tavares escritos ao longo dos últimos 50 anos.

Maria da Conceição Tavares construiu uma carreira acadêmica reconhecida internacionalmente, como atesta a publicação inglesa A biographical dictionary of dissenting economist (2000) – ela é uma das quatro mulheres selecionadas entre os 100 mais importantes economistas heterodoxos mundiais do século XX e a única mulher da América Latina. Seguramente, Conceição Tavares foi a pioneira brasileira da Economia e até os dias atuais ainda não passou o bastão da mais importante economista nacional.

A escolha dos textos desta coletânea foi feita com ela e por uma geração de profissionais com a qual Maria da Conceição Tavares contribuiu para suas formações, embora nenhum deles tenha sido orientando dela ao longo das suas respectivas pós-graduações. A organizadora foi a professora Hildete Pereira de Melo (UFF) com a colaboração da professora Gloria Maria Moraes da Costa (Mackenzie Rio). A introdução foi escrita por mim, Fernando Nogueira da Costa (Unicamp).

Os textos apresentados foram publicados nos livros e coletâneas produzidos por ela ao longo do tempo. Estes representam sua contribuição teórica e empírica ao processo de desenvolvimento das economias latino-americanas e, particularmente, da brasileira.

Baixe (e divulgue) o livro eletrônico: Livro da Professora Maria da Conceição Tavares