O império contra-ataca a Argentina com trucuência de Bolsonaro

A atuação do presidente brasileiro para difamar a chapa formada por Alberto Fernández e Cristina Kirchner é regida pelo chefão da Casa Branca.

Por Osvaldo Bertolino

Lula Cristina Kirchener

Se assustou com a tragédia argentina? Já pensou se fosse o seu dinheiro? Já pensou se um evento desses ocorresse no Brasil? Você sobreviveria? Com essas indagações, um analista do mercado financeiro explicou que o “argentino” que foi dormir feliz na sexta-feira (9), depois de uma alta de 8% da bolsa, terminou a segunda-feira (12) amargando o segundo pior pregão da história do mundo, nas contas da Bloomberg, uma agência de notícias que funciona também como empresa de tecnologia e dados para o mercado financeiro.

A queda foi de 48% em dólares do índice Merval, o principal indicador de bolsa de valores da Argentina e o terceiro mais importante da América Latina, atrás apenas da BM&FBovespa em São Paulo e da Bolsa de Valores Mexicana, na Cidade do México. Só com o câmbio, diz o analista, o “argentino” ficou 30% mais pobre em apenas alguns minutos de pregão. E não foram só os pequenos investidores que perderam; pesquisa do Bank of America Merrill Lynch mostrou que dois em cada três gestores também acreditavam em “melhora” no quadro político.

Epicentro da economia europeia

Esse “argentino” na verdade é um personagem integrante do que o economista Paulo Nogueira Batista Jr. chama de “a turma da bufunfa”; segundo ele, “um agrupamento razoavelmente estruturado, que se dedica a fomentar, proteger e cultuar o vil metal”. Não é o povo argentino. E o analista do mercado financeiro não estava falando para o povo brasileiro, mas, sim, para o “brasileiro” da mesma “turma” do “argentino” que, nas suas palavras, foi vítima de uma “destruição de riqueza”.

O povo argentino é vítima do governo desse “argentino”, assim como o povo do Brasil é vítima do governo do “brasileiro” para quem o analista fez as perguntas iniciais. Esse povo paga a conta de indicadores como o índice de atividade econômica do Banco Central (IBC-Br), que reúne dados de indústria, serviços e agropecuária, apontando encolhimento no segundo trimestre, como já ocorrera no primeiro, um dado que alguns economistas consideram nova recessão.

É o caminho da Argentina. E, em certo sentido, da Europa, com a Alemanha — uma espécie de epicentro da economia europeia — enfrentando um recuo da produção industrial, sinalizando uma recessão. É mais uma vítima da intensificação da guerra comercial movida pelo governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, contra a China — ambos os países são importantes destinos das exportações alemãs.

Sobre esses dois casos, é importante considerar a má educação e a inconveniência do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice, general Hamilton Mourão. O primeiro tem agredido de forma vil e covarde a chapa formada por Alberto Fernández e Cristina Kirchner, vitoriosa nas eleições primárias argentinas, chamada por ele — dentre outros adjetivos degenerados — de “esquerdalha”; e o segundo, seguindo o comportamento obsceno do primeiro, disse que os tremores da chanceler alemã Angela Merkel (possivelmente um problema de saúde) se devem a uma “encarada de Trump”.

Poder de compra dos trabalhadores

No pano de fundo dessa situação estão os números reunidos pelo vice-presidente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Sérgio Rubens, dando conta de que depois da bancarrota capitalista de 2007-2008 sobreveio, em 2012-2013, na Europa, a segunda onda da crise, sendo seguida, na terceira onda, a partir de 2014, pelo conjunto da periferia capitalista. 

Os dados de Sérgio Rubens indicam que a taxa de crescimento do PIB mundial, de 2010 até 2018, foi medíocre — Estados Unidos, média de 2% ao ano; Japão, 1,5%; Europa,1%. Escapou apenas a China, ainda que não inteiramente, que teve seu crescimento reduzido para a faixa de 6% depois de mantê-lo próximo aos 10% anuais durante três décadas. Para piorar a situação, o Bird, o FMI, a OCDE e a OMC preveem um desaquecimento da economia mundial e apontam como primeiro sintoma a violenta oscilação nas bolsas, no final do ano passado.

As informações de Sérgio Rubens dizem também que a massa de recursos fora da esfera produtiva, que circula no circuito financeiro constituído basicamente por “derivativos” — o papelório inventado pelos financistas internacionais —, voltou ao perigoso patamar de antes do desabamento, em 2008: US$ 600 trilhões. As dívidas pública e privada cresceram de maneira vertiginosa, atingindo US$ 233 trilhões — o triplo do PIB mundial.

Por fim, ainda segundo Sérgio Rubens, a taxa de lucro nas principais economias capitalistas estacionou num patamar que corresponde à metade do que era no começo da década de 1960, bloqueando a transferência dos recursos financeiros para a esfera produtiva. Esse cenário é agravado pela redução do poder de compra dos trabalhadores, decorrente do desmonte das conquistas sociais do pós-Segunda Guerra Mundial.

Revolucionários que deram certo

Os operadores da engrenagem que move essa massa de dinheiro, espelho do capital fictício, têm um projeto de poder. A cadeia de golpes e a intensificação das manipulações ideológicas na América Latina — sobretudo pelo recurso midiático —, apoiadas por guerras econômicas, são o terceiro ciclo de implantação do projeto neoliberal na região. O primeiro foi o seu lançamento, marcado pela condução anglo-saxã de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos) e Margaret Thatcher (primeira-ministra da Inglaterra).

Seus prepostos, abertamente aliciados, foram Augusto Pinochet (Chile), Calos Menem (Argentina), Carlos Salinas de Gortari (México), Alberto Fujimori (Peru), Andrés Perez (Venezuela), Gonzalo Sánchez de Lozada (Bolívia) e Fernando Collor de Mello (Brasil). Perseguidos pela lei — alguns ainda estão foragidos —, eles foram substituídos, num segundo ciclo também marcado pela condução anglo-saxã (desta vez com Bill Clinton e Tony Blair), por presidentes mais precavidos — chegaram a mudar a lei, com fez Fernando Henrique Cardoso (FHC), para criar proteções em caso de serem levados aos tribunais.

Agora, sob o comando de Trump, eles tentam restaurar aquela ordem, se utilizando de representantes truculentos, como Bolsonaro e Mourão, e de falsos paladinos da moralidade, como a trupe da Operação Lava Jato. O Brasil, na condição de casa de força da região, está sendo tutelado pela Casa Branca com o objetivo claro de neutralizar a sua influência local. Voltou à cena política, agora de forma ainda mais rasa, a tese de que os revolucionários que deram certo não foram Karl Marx, Vladimir Lênin e Mao Tse-tung, mas Milton Friedman, Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

Essa tese é especialmente importante na guerra contra a aproximação soberana entre Brasil e Argentina. Como explicou o cientista político e historiador Luis Moniz Bandeira, quando ele lançou seu livro A formação dos Estados na Bacia do Prata, em 2006, os Estados Unidos não aceitam a unidade desses dois países porque eles são capazes de formar na América do Sul "um superestado como a União Europeia".

Em entrevista ao site uruguaio La Onda Digital, Moniz Bandeira analisou "a grande influência do Brasil" na origem dos "países da América hispânica", um processo histórico que "de alguma maneira continua até hoje". Ele lembrou que "a soma do Brasil com a Argentina é uma potência que, em termos de PIB, é quase equivalente à Alemanha e muito superior a todo o resto da América do Sul".

Silêncio de Samuel Pinheiro Guimarães

A então “guerra psicológica em curso na América do Sul” e "a campanha no Brasil contra o governo Lula" era "contra a política externa, não contra a política econômica", disse ele, referindo-se ao auge da farsa do “mensalão”. Com o agravante de que o projeto norte-americano de criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) entrara “em colapso”. “A América do Sul não tem saída se não se unir, e o eixo dessa união pode ser formado por Brasil, Argentina e Venezuela", analisou.

Foi o que de fato aconteceu. Os governos brasileiro e argentino puseram boa parte do aparato do Estado trabalhando para o aumento das exportações, mudando o rumo da política externa do projeto neoliberal ao desenvolver uma estratégia multipolar de afirmação da soberania da região, de construção paciente e pertinaz de um bloco sul-americano, de redução das desigualdades e de realização do potencial dos países do hemisfério Sul. O Brasil criou embaixadas em Camarões, Tanzânia, Belize, Croácia, Guiné Equatorial e Sudão, e consulados em Doha (Catar), Lagoa (Nigéria), Beirute (Líbano) e Iquitos (Peru).

O ódio dos atuais neoliberais não consegue esconder os êxitos daquela política externa brasileira. É o mesmo fel dos editoriais e colunas da mídia destilado contra o então chanceler Celso Amorim e, principalmente, o arquiteto daquela política externa, o então secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães.Tacharam-no de "xenófobo", "inimigo da modernidade" e "dinossauro nacionalista". Ele suportou tudo com galhardia, exercendo sua função com discrição — ao contrário dos atuais pavões do Itamaraty. Esse é o ponto em que os homens se distinguem dos moleques; Samuel Pinheiro Guimarães foi brilhante mesmo em silêncio.