Então foi você, Moracy do Val?

"O magnetismo estético do Secos & Molhados era tamanho, que mesmo morando no interior e não possuindo aparelho de som em casa, tínhamos os álbuns e nos reuníamos em saraus para ouvir juntos, como fazíamos com discos do Pink Floyd, Raul Seixas e Zé Ramalho, entre outros".

Por Flávio Paiva*

Secos e Molhados Moracy - Foto: Divulgação

Em 1973 eu tinha 14 anos e, juntamente com os amigos Félix e Zezé, criamos uma banda cover do grupo Secos & Molhados. Com os rostos pintados à base de mistura de creme dental e brilhantina, rímel e batom, fizemos várias apresentações em Independência e até em cidades vizinhas. A poesia, a máscara, o som suave e profundo e aquela performance transgressora chegavam para nós como nossas porque já estavam nas nossas inquietações.

Um ano depois, quando estávamos afinados com o segundo álbum da banda, nossos ídolos romperam a relação e, na sequência, também entramos em fase de dispersão: o Félix, que era o Ney Matogrosso, foi morar em Brasília, o Zezé, que fazia o João Ricardo, seguiu para Manaus, e eu, que assumia a persona do Gerson Conrad, mudei para Fortaleza. Os motivos da nossa separação sempre soubemos: estudar e trabalhar; já o que havia dado fim à nossa banda favorita perdeu-se em versões ao longo do tempo.

Só agora, com o lançamento do livro Moracy do Val Show! (WMF Martins Fontes, 2019), dos jornalistas Celso Sabadin e Fernando Ucha, descubro que o responsável pela produção e estratégia de marketing que catapultou o Secos & Molhados ao patamar de sucesso nacional, chegando a desbancar Roberto Carlos do primeiro lugar na venda de discos, foi o pai de duas amigas, a Renata do Val e a Fernanda do Val, com as quais nunca havia falado sobre esse assunto.

Pois foi o senhor Moracy, pai delas, o responsável por fazer com que a proposta experimental da banda saísse dos pequenos espaços alternativos da capital paulista para chegar aos mais distantes recantos do país. O magnetismo estético do Secos & Molhados era tamanho, que mesmo morando no interior e não possuindo aparelho de som em casa, tínhamos os álbuns e nos reuníamos em saraus para ouvir juntos, como fazíamos com discos do Pink Floyd, Raul Seixas e Zé Ramalho, entre outros.

A arte revolucionária por ato, e não por panfletagem de afirmação, daquele armazém de especiarias purpurinadas e explosivas seguiu me influenciando de muitas formas, haja vista a gravação de Sangue Latino (João Ricardo / Paulinho Mendonça) no álbum América (1992), que produzi com a cantora Olga Ribeiro, a inclusão de O Vira (João Ricardo / Luhli) no repertório das Festas do Saci e as parcerias com Tato Fischer (Latitude e Azul), integrante da formação inicial do Secos & Molhados.

Nas páginas do livro Moracy do Val Show! fui saber ao certo como toda essa preciosidade musical, poética, cênica, lúdica e política tornou-se um clássico da Música Plural Brasileira e por que durou tão pouco tempo no mercado de espetáculos e da indústria fonográfica, mesmo contando com um empresário-parceiro: “Acho que o meu maior mérito foi simplesmente não ter deixado ninguém atrapalhar a criação dos Secos & Molhados, que vieram com as músicas prontinhas” (p.79), relata Moracy.

Em 1974 eu tinha 15 anos, cantei Primavera nos Dentes (João Ricardo / João Apolinário) com meus amigos, para nunca mais esquecer: “Quem tem consciência para ter coragem (…) Quem não vacila mesmo derrotado / Quem já perdido nunca desespera”. Aliás, essa afirmação serve para o repertório dos dois primeiros discos do Secos & Molhados que, com inteligência e arte, trata dos principais temas da nossa agenda social, política e ambiental. Quem quiser saber o que se passou é melhor ler Moracy do Val Show!