Livro desvenda a farsa do "capitão" Bolsonaro 

Livro detalha como tribunal absolveu Bolsonaro e condenou a imprensa. Em O Cadete e o Capitão, jornalista narra processo a que atual presidente respondeu na Justiça Militar nos anos 1980.

Por Rubens Valente

Livro Maklouf Bolsonaro

Em vez de verificar as provas e as circunstâncias da mensagem, preferiu-se desqualificar o mensageiro. Soa familiar?

A história contada em “O Cadete e o Capitão”, o novo livro-reportagem do jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, se passou mais de 30 anos atrás, mas poderia facilmente ter ocorrido nos dias atuais, em um lembrete de que a intolerância contra a imprensa pode ter ganhado força com as redes sociais, mas está longe de ter nascido agora.

O livro detalha o processo judicial a que Jair Bolsonaro respondeu no final dos anos 1980 a partir de uma reportagem da revista Veja que o acusou de ter elaborado um plano terrorista de explodir bombas em unidades militares. Ele acabou absolvido em 16 de junho de 1988.

O processo detalhado com habilidade por Maklouf expõe tanto os fatos em si quanto a forma pela qual eles foram cuidadosamente varridos para debaixo do tapete. A conclusão é que a Justiça Militar foi extremamente tolerante com a intolerância de Bolsonaro.

O que dizer de um capitão do Exército que publica sem autorização um texto contra seus superiores, reconhece ter agido com deslealdade, é acusado de tramar um atentado político, xinga repetidas vezes o então ministro do Exército, propaga a desconfiança dentro da tropa, é chamado publicamente pelo Exército de mentiroso, e mesmo assim é acobertado pela instituição que deveria enquadrá-lo nos limites da democracia?

Em uma narrativa seca, de poucos adjetivos, Maklouf explica como um grupo influente de militares do alto escalão —os ministros do STM (Superior Tribunal Militar), em Brasília— distorceu documentos e depoimentos para livrar Bolsonaro de uma condenação e focar no que eles entenderam ser o verdadeiro inimigo: a imprensa, claro, em um perfeito eco com a realidade de 2019.

Mais de 30 anos depois, ainda impressiona ler as acusações e infâmias lançadas por Bolsonaro e pelos ministros contra a Veja e a então repórter Cassia Maria. Esses jornalistas apenas fizeram seu trabalho, que foi revelar o plano tresloucado de um grupo insubordinado dentro da Vila Militar cuja intenção era atingir a credibilidade do ministro do Exército.

Foi a mais importante revelação sobre a vida política subterrânea dos quartéis desde o fim da ditadura, em 1985. Em uma democracia sadia, os jornalistas teriam sido apoiados e encorajados pelos ministros do STM, em tese os mais interessados em evitar rebeliões na caserna.

Mas que nada, a sessão no tribunal que absolveu Bolsonaro na prática se transformou em um ataque ao jornalismo, como descreve o livro. Dos 13 ministros presentes à sessão, apenas 4 votaram pela condenação de Bolsonaro, com destaque para o ministro José Luiz Clerot, um dos poucos a defender o papel da imprensa.

“Repórter não é flor que se cheire”, proclamou o general Alzir Benjamin Chaloub, que também xingou a jornalista de perigosa e cascavel. Bolsonaro repetiu acusações semelhantes ao longo de toda sua vida —chamou-a de “maluca” em entrevista à Folha em 2017. Tanto lá como no livro, Cassia guarda silêncio.

O livro espelha a incompreensão calculada de Bolsonaro e da cúpula da Justiça Militar sobre a função da imprensa e como ela atua. Como presidente da República, ele vive a confundir o fato narrado com os jornalistas que simplesmente o narram.

No último domingo (4), por exemplo, posou de vítima ao dizer que seu filho Eduardo foi “massacrado” pela imprensa, quando a controversa e inédita indicação de um filho de presidente para a embaixada do Brasil nos EUA partiu do próprio pai.

Como experiência para o cargo, foi o próprio filho que citou “fritar hambúrgueres”, não os jornalistas. Mas no discurso diversionista de Bolsonaro, a imprensa é que aparece como a responsável pela polêmica. Foi o que também aconteceu em 1988.

Desde o título, sabe-se que o livro de Maklouf não pretende ser uma biografia sobre Bolsonaro. Ele se concentra na carreira militar, na investigação e no julgamento. Porém acaba lançando aqui e ali luzes sobre o caráter fabulador de Bolsonaro.

Maklouf evitou conclusões mais aprofundadas sobre a carreira militar de Bolsonaro, mas os fatos descritos são suficientes para o leitor concluir que a única coisa que ele fez de relevante foi participar de campeonatos esportivos, daí seu apelido “Cavalão” —além de ter salvado um colega de afogamento.

Bolsonaro passou no Exército 12 dos 21 anos da ditadura militar (1964-1985). Porém em todo esse tempo nunca se relacionou diretamente com a repressão à luta armada de esquerda.

Daí decorre boa parte do seu desconhecimento sobre o tema, como dizer equivocadamente que a jornalista Miriam Leitão estava disposta a ir para a guerrilha do Araguaia ou afirmar que Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, foi morto pelos próprios companheiros.

A obra termina com o julgamento de absolvição, deixando no leitor um gosto de quero mais. Como não era seu objetivo, deixa de narrar os primeiros passos de Bolsonaro na carreira política.

Eles foram calcados exatamente na questão salarial do eleitorado militar e nos episódios de rebeldia protagonizados poucos anos antes. Assim, a controversa decisão do STM facilitou a construção do “mito”.