Luiz Gonzaga Belluzzo: a interface economia-política

Sobre a desigualdade global e os pensamentos desconectados na economia. Ante o nervosismo da insegurança econômica, recrudesceu a polarização política.

Luiz Gonzaga Belluzzo

A Folha de S.Paulo oferece a seus leitores a série “Desigualdade Global”. Na sequência de matérias e entrevistas, o jornalista Fernando Canzian supera a barreira de banalidades que tem aprisionado o debate a respeito do tema nos arraiais da grande mídia brasileira. Vale a pena ler o conjunto da obra.

Na edição de quarta-feira 31 de julho, Canzian abre espaço para a entrevista do economista Homi Kharas, da Brookings Institution. Na primeira investida, o jornalista pergunta: Alguns especialistas afirmam que a classe média nos países ricos encolhe devido à transferência de empregos, sobretudo industriais, para a Ásia. O senhor concorda?

Resposta: “Sempre que duas coisas acontecem ao mesmo tempo as pessoas observam essas tendências e acham que elas estão conectadas. Não creio que a história seja essa. A classe média na Ásia está indo muito bem porque a economia cresce. A classe média nas economias avançadas não vai bem porque a desigualdade está aumentando rapidamente e também devido à natureza do crescimento, que vem muito mais das empresas de tecnologia, que têm um número reduzido de funcionários. São dois padrões de crescimento simultâneos. Mas as pessoas querem tentar conectar os dois e, como sempre, em qualquer país, diante de problemas econômicos, a coisa mais fácil para um político é colocar a culpa em alguém”.

A resposta à primeira pergunta é a chave para o leitor compreender a incompreensão confusa do ilustre economista a respeito dos vícios e virtudes da assim chamada globalização. Homi Kharas revela seus pendores de exímio especialista no método da desconexão sistêmica, há anos praticado à saciedade por tribos de economistas que resistem nas trincheiras do pensamento desconectado. Um pouco, talvez muito pouco, de história não faria mal.

Entre meados dos anos 1970 e início dos 1980, o capitalismo “social” e “inter-nacional” do imediato Pós-Guerra deu os primeiros passos para transfigurar-se no capitalismo “global”, “financeirizado” e “desigual ”, hoje tormento dos Trumps e Bolsonaros da vida.

A década de 1970 é também o momento da aproximação China-EUA, promovida por Nixon e Kissinger. De uma perspectiva geopolítica e geoeconômica, a inclusão da China no âmbito dos interesses americanos é o ponto de partida para a ampliação das fronteiras do capitalismo, movimento que iria culminar no protecionismo do republicano (liberal?) Donald Trump e no livre-comércio do comunista Xi-Jinping. Ironias da história: uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa.

Essa “desarticulação” (ou rearticulação?) econômica descortinou uma nova fase, marcada por conflitos e contradições entre o modo de funcionamento dos mercados globalizados e os espaços jurídico-políticos nacionais.

A partir dos anos 1980, a liberalização das contas de capital, a desregulamentação financeira e comercial, revigorou a vocação universalista das empresas americanas. No afã de reduzir os custos salariais e escapar do dólar valorizado, o deslocamento “competitivo” da produção manufatureira americana buscou as regiões em que prevaleciam baixos salários, câmbio desvalorizado e perspectivas de crescimento acelerado.

Isso promoveu a “arbitragem” com os custos salariais à escala mundial, estimulou a flexibilização das relações de trabalho nos países desenvolvidos e subordinou a renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas. O desemprego aberto e disfarçado, a precarização e a concentração de renda cresceram no mundo abastado.

No outro lado do mesmo processo, as lideranças chinesas valeram-se da “abertura” da economia ao investimento estrangeiro ávido em aproveitar a oferta abundante de mão de obra. Apostaram na combinação favorável entre câmbio real competitivo, juros baixos para empreender estratégias nacionais de investimento em infraestrutura, absorção de tecnologia com excepcionais ganhos de escala e de escopo, adensamento das cadeias industriais e crescimento das exportações.

Na faina competitiva entre os gigantes empresariais entraram em campo os avanços da inteligência artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia, acentuando as assimetrias entre países, classes sociais e empresas. Os espaços nacionais foram submetidos aos processos simultâneos de interdependência econômica e de desintegração social.

Ante o nervosismo da insegurança econômica, recrudesceu a polarização política, fomentada pelo crescimento da massa daqueles que tiveram suas condições de trabalho e vida precarizadas na senda da arbitragem geográfica de salários, impostos, câmbio e juros pela finança globalizada.