Hélio Leitão: "O presidente não age como um estadista"

 
Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, o advogado comenta a postura de confronto e divisão que, considera, Bolsonaro vem alimentando com as recentes declarações

Foto: Jornal O Povo

 A postura de confronto do presidente Jair Bolsonaro na série de declarações que tem feito desde o meio de julho é motivo de preocupação para Hélio Leitão, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O comportamento, que não é recente, porque — como descreve Leitão — Bolsonaro "não está negando a sua história pessoal" tem gerado consequências.

Uma delas, considera o ex-presidente da seccional cearense da entidade, é a legitimidade alcançada por grupos para desrespeitarem os direitos humanos baseado no discurso que o presidente vem proferindo — e que vem subindo de tom, enfatiza Leitão. Ele aponta ainda o negacionismo histórico contido nas recentes declarações de Bolsonaro direcionadas ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, na qual afirma saber como o pai de Cruz, desaparecido político do período, morreu.

Leitão projeta a resistência em uma união de instituições da sociedade civil em torno da defesa dos direitos humanos, caracterizada por ele como uma "trincheira" na qual a defesa nada mais é do que da própria Constituição e da legalidade. Assim, considera, será possível confrontar o "discurso vulgar que irradia da Presidência da República".

O POVO – O presidente fez declarações sobre o assassinato do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desaparecido durante a Ditadura Militar. O que isso mostra sobre a postura do presidente frente a esse período da história?

Hélio Leitão – O presidente Bolsonaro tem se relevado o inimigo n° 1 dos direitos humanos. O que se espera de um presidente da República, o que se espera do magistrado supremo da nação, do supremo mandatário é uma postura que fomente a união nacional, a pacificação social e a concórdia. O que se tem visto das declarações recorrentes do presidente Jair Bolsonaro é, ao revés, um discurso que fomenta o ódio de classe, a misoginia, a LGBTIfobia, o preconceito racial, que fomenta o ódio. Portanto, ele consegue se credenciar, em tempo muito rápido, como inimigo n° 1 dos direitos humanos do Brasil.

Agora, falando da declaração que ele fez com relação ao presidente Felipe Santa Cruz. Primeiro, é de uma extrema crueldade, de uma extrema desumanidade debochar da dor de toda uma família. Felipe Santa Cruz foi privado de ter um pai. O seu pai desapareceu, foi torturado e morto, o que é reconhecido pelo Estado Brasileiro. Torturado e morto pelo Estado Brasileiro. Não há de se negar isso, que é uma declaração e um reconhecimento público. Esse mea culpa o Estado brasileiro já fez. Não adianta o presidente estrebuchar. Esse reconhecimento já foi feito.

O presidente Bolsonaro, portanto, agride a toda uma família. Isso fere o decoro presidencial, que é o que se espera de um presidente da República. Além de contrariar o que o próprio Estado reconheceu. O presidente não age como um estadista.

(Por isso) Nós podemos ler essa declaração do presidente por dois ângulos. O ângulo pessoal, que isso é de uma sordidez, isso é de uma vileza, de uma baixeza, de uma crueldade sem igual. É um fato. É um desvio de caráter desse senhor. E de outro lado o negacionismo da Ditadura. Negar a violência que o próprio Estado reconhece.

OP – O presidente, inclusive, questionou a legitimidade da Comissão da Verdade, negando um colegiado do próprio Estado.

Hélio – Ele está negando o próprio Estado brasileiro. A verdade é que têm-se a impressão que o presidente não sabe o que fala. Ele não sabe o que fala.

OP – Essa não é a primeira declaração do presidente nesse sentido. Ele fez comentários sobre a jornalista Míriam Leitão e chegou a homenagear o coronel Brilhante Ustra (ex-chefe do DOI-CODI, acusado de crimes de tortura, assassinatos e desaparecimentos), enquanto ainda era deputado. Quais os riscos de ter um presidente que trata dessa forma o período da ditadura militar?

Hélio – Ele nega a História ao negar a verdade, contestando a violência da Ditadura com todos os seus males — cerceamento de liberdades públicas, tortura, desaparecimentos forçados. O presidente acaba fomentando mais ódio, criando uma ambiência de desrespeito ao outro, quando o que se espera de um presidente e de um estadista é uma postura que fomente a coesão nacional, a concórdia e a união. Na verdade, o seu discurso acaba fomentando mais violência. É um discurso que vai na contramão dos cânones democráticos. O presidente sinaliza no rumo da barbárie, quando o que a gente defende e espera é que esse País dê sempre e mais saltos civilizatórios.

OP – O que isso revela também de como o presidente lida com a divergência que uma instituição como a OAB, que tem se mostrado atuante, inclusive com críticas ao Governo?

Hélio – Mas isso é próprio dos amantes das ditaduras. Aqueles que acreditam na ditadura e não tem compromisso com a democracia, aqueles de vocação autoritária não sabem lidar com a divergência. Isso é próprio do caráter do presidente, da vocação que ele diz ter. Aquele que aplaude ditadura, não respeita divergências. Nas democracias, as divergências não só devem ser respeitadas como, mais ainda, devem ser valorizadas. O jogo democrático é o jogo do embate, do entrechoque dialético de ideias, de propostas, de visões de mundo. É assim que se constrói uma democracia, é assim que se constrói um país democrático. Não negando a História. Esse negacionismo vulgar da História que o presidente empreende. O presidente não contribui para o fortalecimento da democracia, pelo contrário, ele nega a democracia.

OP – Anteriormente, o senhor disse que o presidente vem se transformando no inimigo n° 1 dos direitos humanos. Quais as áreas dos direitos humanos que o presidente está atacando e que o credenciam a este posto que o senhor coloca? Como ele se transformou nesse inimigo n° 1?

Hélio – O presidente Bolsonaro, e isso é algo doloroso de reconhecer, não está negando a sua história pessoal. Ele está sendo o que ele sempre foi. Esse ideário ele sempre carregou e fez trajetória política montado nesse discurso. Agora, ele se torna o inimigo n° 1 dos direitos humanos no momento em que: hoje, ele não é mais um obscuro deputado do Rio de Janeiro. Hoje, ele é o magistrado supremo da nação brasileira. É um homem que representa a nação. Cada palavra sua, cada gesto seu é sinalização para o povo brasileiro e para o mundo. No momento em que o seu discurso fomenta o ódio, fomenta a destruição do outro, fomenta a violência, nega direitos. Relativiza direitos e garantias processuais, procura relativizar a liberdade de imprensa, procura relativizar as regras que buscam pautar o respeito ao meio ambiente. No momento em que ele atua dessa forma, que ele faz disso a sua plataforma ou apenas no momento em que ele verbaliza isso, o Bolsonaro se credencia sim para ser o inimigo n° 1 dos direitos humanos no nosso País.

OP – Esse discurso pode acabar legitimando pessoas que acatam essas declarações?

Hélio – O presidente irradia isso. No momento em que, a partir do magistrado supremo da nação, se irradia um discurso como esse, isso reverbera. Setores menos esclarecidos da população, setores que confundem a defesa do meio ambiente com obstáculo ao desenvolvimento, as pessoas que confundem a defesa dos direitos humanos com a defesa de pessoas que cometeram crimes. O discurso reverbera e setores menos esclarecidos da sociedade brasileira acabam comprando esse discurso vulgar, esse discurso pobre, tosco de que a defesa do meio ambiente é um obstáculo ao desenvolvimento, que a defesa de povos tradicionais (indígenas e quilombolas) representariam um obstáculo ao desenvolvimento, que a defesa de uma ação policial que se paute pela legalidade e pelo respeito aos direitos humanos e as garantias processuais criam obstáculo à paz social, um obstáculo ao combate à violência e à criminalidade. Compra-se esse discurso de maneira fácil e isso tudo é motor de mais conflitos e de mais violência, além de mais divisão na sociedade brasileira.

OP – O presidente questionou a morte do cacique Emyra Wãiapi (da terra indígena Waiãpi, no Amapá) dizendo não haver "nenhum indício forte" de assassinato. Ele também chamou de "incidente" os 80 tiros efetuados por soldados do Exército e que levaram à morte o músico Evaldo Rosa. Isso demonstra um relativização quanto a uma parcela da sociedade?

Hélio – Sem dúvida. O presidente Bolsonaro aposta na divisão da sociedade brasileira. Foi essa divisão que o elegeu e ele aposta nessa permanente divisão, sem atentar para as consequências de seus atos, discursos e omissões. O Brasil está recuando a passos largos. O Brasil, inclusive aos olhos da comunidade internacional, tem sido motivo de muita preocupação. O Brasil tem se apequenado aos olhos da comunidade internacional.

OP – Quais os desafios de estar à frente de uma comissão que empreende essa luta em um momento como esse e com essa postura do presidente?

Hélio – O presidente Bolsonaro golpeia a democracia por dentro, a gente vive um estado de exceção democrática e, nesses momentos, as instituições da sociedade civil ganham importância como espaços de resistência, como espaço de promoção de um discurso responsável, de um discurso que confronte o discurso vulgar que emana da Presidência da República e que se irradia pela sociedade. Nesses momentos, as instituições da sociedade civil vão ganhando maior relevância.

OP – Quais projeções são possíveis para o futuro? É possível que piorem os ataques que o presidente já vem fazendo aos direitos humanos?

Hélio – O discurso do presidente Bolsonaro vem subindo de tom. A cada nova manifestação, as vulgaridades, os ataques aos direitos humanos, os ataques as minorias têm subido de tom. E é nesse momento em que essas entidades da sociedade civil organizada têm que dar-se as mãos. Isso já está se desenhando, uma grande concentração das forças da sociedade civil comprometidas com os direitos humanos, porque a defesa dos direitos humanos não é outra coisa senão a defesa da Constituição, a defesa da legalidade. Busca-se vulgarizar a ação dos militantes de direitos humanos como pessoas que não querem a punição de pessoas que cometeram crimes. Não é nada disso. O que se quer é o império da legalidade. Aqueles que cometeram crimes, que paguem por eles. Agora, que paguem por eles dentro das regras do jogo democrático, dentro das regras do devido processo legal. É assim ou é a barbárie. É assim ou é o vale tudo. Não tem outra alternativa. Parafraseando o Rui Barbosa: "fora do direito não há solução". O que a gente busca, os que militam na defesa dos direitos humanos, os que militam nessa trincheira, não é outra coisa senão a defesa do império da lei e da legalidade.

OP – Você mencionou que o Bolsonaro está subindo de tom. Você considera que ele está ficando mais confortável de falar isso como presidente?

Hélio – Parece que ele se deslumbrou com o exercício do poder. O presidente nunca exerceu cargo no Executivo e se deslumbra com o poder e tem aquela sensação de onipotência e sai com essa metralhadora giratória, distribuindo bobagens, sandices por onde passa.

 

Entrevista

Hélio Leitão estava em viagem ao exterior, da qual retornará apenas na próxima semana. Ele atendeu ao O POVO através de uma conversa por ligação no Whatsapp, que durou cerca de meia hora na última quarta-feira, 31.

 

O POVO