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Com Bolsonaro, Brasil vira caso raro de país hostil ao próprio cinema

O apoio do Estado à produção de filmes, atacado por Jair Bolsonaro, é prática comum nos mais diversos países desde o início do século 20. Pela própria natureza da atividade cinematográfica, que é tanto arte quanto indústria, os governos criaram formas de corrigir aquilo que na teoria econômica se chama “falhas de mercado” e garantir a sobrevivência da produção local.

Por Ana Paula Sousa*

Esqueletos

Já na década de 1920, o governo alemão determinou que se produzisse um filme nacional para cada estrangeiro lançado. E o Reino Unido, além de estipular que 5% de tudo o que fosse exibido tivesse origem local, traçou, como meta, a produção de 50 filmes britânicos por ano. Era só o início.

No pós-Guerra, a questão da proteção ao cinema foi debatida no Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o Gatt. O argumento era que os filmes carregavam em si sistemas de representação e que não podiam ser tratados como sapatos ou carros. A grande reação a essa tese veio dos Estados Unidos. O país defendia que os filmes eram mercadorias como as outras e deveriam estar sujeitos às regras gerais do comércio internacional e à lógica da oferta e da demanda.

Tal dilema perdurou por décadas, mas, hoje, é quase que universalmente aceita a ideia que, sem incentivos, os cinemas nacionais definham ante a hegemonia de Hollywood. Apesar de as relações entre cinema e Estado terem, ao redor do mundo, diferentes feições e funções, há elementos comuns às políticas de proteção e estímulo.

Os mecanismos mais recorrentes, alguns usados no Brasil, são subvenção estatal para incentivar a produção, taxas de importação de filmes, cota de tela e festivais nacionais. A cota de tela existe na Coreia do Sul, na Espanha e na Itália; as barreiras tarifárias para a entrada de blockbusters hollywoodianos é prática na Índia, na Turquia e no Canadá; a cobrança de taxa sobre os ingressos (revertida em investimento na produção) existe na França, na Alemanha e na Itália; em variados em países, as TVs são obrigadas por lei a apoiar o cinema.

Para justificar tais medidas, os governos lançam mão de vários argumentos. No século 20, eles eram, sobretudo, de natureza cultural. No século 21, se tornaram também econômicos, dada a potência do mercado de entretenimento. Tudo isso é para dizer que, mundo afora, os governos se metem, sim, na feitura de filmes – não no sentido de produzi-los, algo que tampouco acontece no Brasil, mas no sentido de preservar sua existência. E em todos esses lugares há um órgão que põe essas políticas em prática – justamente, o que faz a Ancine.

No caso do Brasil, a primeira medida de proteção ao cinema nacional data de 1934, quando se aumentou a taxa de importação da película impressa. Em 1966, o Estado passou a atuar também como financiador. “A tal da Ancine”, para usar a expressão do presidente, não é, portanto, nem uma jabuticaba nem uma invenção dos governos petistas.

* Ana Paula Sousa, jornalista, é doutora em Sociologia da Cultura pela Unicamp