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Comunismo e religião: as cartas de Di Cavalcanti a Alceu Amoroso Lima 

Seis cartas recém-descobertas do pintor modernista Di Cavalcanti para o escritor imortal da ABL, Alceu Amoroso Lima (1893-1983), o Tristão de Athayde, mostram que eles eram parceiros também no debate religioso. Mesmo diante do vínculo de Di Cavalcanti com o Partido Comunista do Brasil, as conversas fluem de forma respeitosa.

Por Xikito Ferreira*

Di Cavalcanti

Guardadas durante quase 90 anos, elas trazem as marcas do tempo nas dobras vincadas, nas manchas do papel e no traço de uma escrita impecável que já não existe mais. Seis cartas redigidas pelo pintor modernista, desenhista, ilustrador, muralista e caricaturista Di Cavalcanti (1897-1976) para o escritor, crítico literário, jornalista, advogado, líder católico, imortal da Academia Brasileira de Letras, sociólogo, filósofo e educador Alceu Amoroso Lima (1893-1983), o Tristão de Athayde, acabam de ser descobertas.

A correspondência datada do início dos anos 1940 prova que os interlocutores compartilhavam mais do que currículos vastos. Eram parceiros também no debate religioso que culminou com a conversão de Di Cavalcanti. Comunista declarado, o pintor mostra, através da evolução das cartas, um profundo interesse na temática católica apresentada por Amoroso Lima. Um movimento de fé que não havia sido revelado até essa descoberta.

Di Cavalcanti sempre foi um artista profundamente marcado por questões sociais. Apesar da conversão, mantém o compromisso ideológico com o comunismo e continua a mostrar em sua obra uma temática de denúncia, uma pintura que traduz em tintas os dramas e o dia a dia de uma parcela invisível da sociedade.

Suas palavras demonstram a preocupação em permanecer fiel aos princípios e um enorme desgosto diante de problemas vividos pelo Brasil, como corrupção, falta de liberdade e as condições de vida dos trabalhadores. “Agora eu pergunto a você. Pelo jeito de eu ser católico, pelo fato de eu ser como sou, um crente consciente amante de Deus e Jesus Cristo que são uma única e grande pessoa, devo não estender a mão aos injustiçados? Sim, meu amigo, meu catolicismo não é convencional e aceite essa carta como um desabafo e como mais uma afirmação de meu grande carinho pelo seu coração. Abraço do Di Cavalcanti”, escreveu o artista em uma carta datada de julho de 1944.

Em uma década em que pensamentos de esquerda não comungavam com o catolicismo, Di Cavalcanti guarda a sua fé restrita ao ambiente privado. A união entre esses dois movimentos ganha força na sociedade apenas anos mais tarde, com o surgimento da Teologia da Libertação, consequência do Concílio Vaticano II, convocado em 1961. Alceu era um dos raros interlocutores com quem o pintor trocava impressões sobre a fé.

Os textos escritos por Amoroso Lima para Di Cavalcanti infelizmente se perderam. Testemunhas desse diálogo, no entanto, as seis cartas inéditas serão apresentadas em agosto pelo pesquisador Leandro Rodrigues na Jornada Tristão de Athayde, a ser realizada em São Paulo, no dia 22, e em Campinas, em 24.

Com as marcas dos anos em que ficou guardada no arquivo de Alceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, essa correspondência traz de volta à luz um diálogo que une crítica, política, fé e, acima de tudo, um profundo compromisso com ideais e princípios atemporais entre dois dos maiores intelectuais brasileiros do século 20.

* Xikito Ferreira é neto de Alceu Amoroso Lima e autor de Histórias de meu Avô Tristão – A Biografia de Alceu Amoroso Lima