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Joan Edesson de Oliveira: Gonzagão, a morte de um rei

Luiz Gonzaga, o "Rei do Baião", faleceu há 30 anos, em 2 de agosto de 1989. Neste ensaio especial para o Prosa, Poesia e Arte, o educador Joan Edesson de Oliveira, mestre em Educação Brasileira, faz um resgate poético da despedida de Gonzagão, autor de clássicos como Asa Branca e Xote das Meninas. Confira.

Luiz Gonzaga
Gonzagão: A morte de um rei

Agosto de 1989. No Nordeste, ainda ecoam os acordes das sanfonas, que por aqui as festas juninas duram dois meses, indo do comecinho de junho até os fins de julho. Já se foram, a esta altura, as últimas chuvas daquilo que chamamos de inverno, o breve período das águas, quando elas porventura aparecem. O pau d’arco rosa enfeita a caatinga, a copa esplendorosa, o rosa cheiroso enchendo os olhos e as narinas. No sertão se fala que a flor do pau d’arco não cai na lama, significando que na sua floração as chuvas já arribaram.

No hospital Santa Joana, no Recife, um rei agoniza.

Lá fora há um som de triângulo, e os gritos de um menino anunciam a venda de cavaco chinês, chegadinha em outros cantos. Um dia, o velho rei correu atrás de um menino assim, encantado com aquele som, com a musicalidade daquele instrumento. Colocou aquele instrumento ao lado da sua sanfona, juntamente com a zabumba que acompanhavam as rezas e as novenas de Santana, sua mãe, na infância no pé da serra do Araripe, no lado pernambucano do Cariri.

Colocou o triângulo, de som agudo, ao lado dos baixos da sanfona. Colocou a zabumba, de som grave, ao lado do teclado. Com aquela disposição o rei montou uma orquestração que se perpetuaria até hoje. Três instrumentos apenas, a valer por uma orquestra inteira.


Gonzagão e seus discípulos: o rei fez história 
 

Mas isso foi há muito tempo. Agora, num leito de UTI do hospital Santa Joana, o rei se debate em dores, a agonia se prolongando. As dores são terríveis, o velho rei sabe que está no fim. Nas festas juninas daquele ano sanfoneiros do Brasil inteiro executaram as suas músicas. Desde a pé de bode velhinha de um cego anônimo num terreiro perdido até as enormes sanfonas de 120 baixos das grandes bandas, todas executaram as suas músicas pelo país afora. Assim continuarão ainda por décadas adiante.

Mas no leito daquele hospital, o rei é apenas um homem velho, que sabe ser chegado o momento de partir.

“Os homens lá de cima querem que eu vá, mas os daqui de baixo não deixam.”

O velho rei é sábio, sente que não dá mais para prolongar tamanho sofrimento. Fora do hospital, os súditos se preocupam, temem a partida do soberano. O velho rei, no seu leito derradeiro, ainda é o mesmo rei sertanejo de sempre, o mesmo rei matuto, e solta o aboio, pungente, dorido.

“Vocês não me levem a mal. Sinto muitas dores e gosto de aboiar ao invés de gemer.”

Não é um homem qualquer a morrer, não é um mortal comum a gemer. Prefere cantar, prefere o aboio dos vaqueiros do sertão, mesmo com medo de incomodar os outros que estão ali, naquele mesmo hospital, com as mesmas dores e os mesmos padecimentos que ele. Quer aboiar, mas ao mesmo tempo teme incomodar os outros.

“– Ele soltou a voz e começou a cantar na sala da UTI. No meio da cantoria parou. Com a voz cansada, perguntou a um dos pacientes que estava ao lado:
– Não está lhe fazendo mal? Não estou lhe incomodando?
– Sua voz ameniza o meu sofrimento. Continue aboiando.”


Luiz Gonzaga foi "o primeiro artista pop, o primeiro artista a fazer turnê pelo Brasil, com patrocínio, com publicidade"
 

Aboia velho rei, aboia, parece que lhe falam assim os outros. E o velho rei aboia, para espantar a dor, para espantar a morte, já tão próxima do seu leito, já tão assim sua vizinha do lado.

O reinado foi longo. Com todas as agruras da sua gente, com toda a miséria, com toda a desigualdade, o reinado foi de alegria.

Foi o primeiro artista pop, o primeiro artista a fazer turnê pelo Brasil, com patrocínio, com publicidade, cortando estradas, em grandes e em pequenas cidades, de sul a norte, de leste a oeste, a sanfona chorando, a sanfona fazendo rir, um vaqueiro velho tangendo os acordes das suas canções, um cangaceiro desafiando volantes imaginárias sertão adentro.

Cumpriu a missão de ir aonde o povo está, gostava de fazer shows na rua, em cima da carroceria de um caminhão, no Brasil de dentro. Poucos, até hoje, mereceram como ele o epíteto de artista do povo, a cantar a alma da sua gente, a mostrar ao país que havia outro país, encoberto, desconhecido. Havia o Brasil do norte, havia o Brasil de baixo, havia o Brasil do povo, que ele tomou como missão cantar e louvar e mostrar ao outro Brasil.

Seu reinado não se deu em um trono de ouro dentro dos palácios. Foi rei na rua, foi rei nos grandes teatros, nas grandes casas de show, mas foi rei no meio do povo, em palcos improvisados, em riba dos caminhões, como gostava tanto. O que lhe encantava mesmo era cantar para o povo.

Foi rei nos braços no povo.

Longo, o reinado. Deixou uma plêiade de príncipes, cada qual mais talentoso. Mas rei mesmo, foi primeiro e único. Os outros foram grandes: um Dominguinhos, um Sivuca, um Oswaldinho, um Borghetinho, um Waldonys, tantos, tantos, tantos. Grandes, todos eles. Dominguinhos foi muito provavelmente o maior dentre os príncipes deixados por ele, mas rei mesmo apenas ele. Apenas ele, soberano.


Dominguinhos,muito provavelmente o maior dos "príncipes" deixados pelo "rei" Luiz Gonzaga
 

É agosto, no sertão. Desperta a acauã, a juriti, bate asas a asa branca, voa a fogo pagou. Desperta o sertão, neste agosto mês de desgosto que se inicia. Agosto é mês aziago, diz o sertanejo. Agosto é mês de desgosto.

Amanhece. Encontram-se, enfim, o sol e o Lua. O sol busca o velho Lua, dois reis a se encontrar.

Amanhece no Recife, passa um pouco das cinco horas da manhã de 2 de agosto de 1989.

O deus Hélio vem na sua carruagem de fogo. Leva o velho Gonzaga, seu Luiz, Gonzagão, mestre Lua, seu Lula, tantos num homem só. Um deus leva o mortal na sua carruagem de fogo, um rei destinado, a partir dali, à imortalidade. O rei vai banhar os cavalos do deus no fim dos oceanos.

Naquele 2 de agosto de 1989, partiu seu Luiz, rei do baião. Foi ser imortal, constituindo, a partir daquele momento, ao lado do capitão Lampião e do meu “padin” Padre Cícero, a santíssima trindade do imaginário e da cultura popular sertaneja.


Reportagem do jornal Folha de S.Paulo sobre a morte de Luiz Gonzaga, que completa 30 anos

Cumpriam-se, ali, os versos proféticos da parceria com Onildo Almeida, há quase duas décadas. Seu Luiz mereceu a coroa de rei e a honrou. Agora, precisava pegar a sanfona, a voz, o baião, o chapéu de couro, o gibão, juntar tudo e dar de presente ao museu. Partia aquele que cantava solto que nem cigarra vadia. Enfim, era chegada a hora final: era a hora do adeus de Luiz, Rei do Baião.

* Joan Edesson de Oliveira, educador, é mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará