Sem categoria

José Carlos Ruy: Anita, heroína de dois mundos 

A catarinense “Aninha” que se tornou Anita Garibaldi, lutou no Brasil pela república e na Itália, pela unificação nacional. Lá e cá, é reconhecida como a grande heroína da libertação.

Por José Carlos Ruy*

Anita Garibaldi

No final de 1859, um cortejo fúnebre cortou o norte da Itália, de Roma até Nizza, levando os restos mortais de uma mulher que se destacara, na década de 1840, na luta pela unificação da Itália. Foi um percurso lento, parando aqui e ali; uma procissão intencionalmente publicitária, que marcava o nascimento do mito de Anita Garibaldi, diz o historiador Wolfgand Ludwig Rau.

A Itália, diz ele, “carente de uma expoente feminina popular”, “converteu Anita Garibaldi em sua heroína nacional” e, assim, consagrou definitivamente a humilde “matuta” brasileira de Laguna, Santa Catarina, que teve a ousadia de unir seu destino ao revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi. E que ficou conhecida como a Heroína de Dois Mundos, a Mãe da Pátria Italiana; a moça destemida que se destacou nos combates pela república em sua terra natal e pela independência e unificação de sua segunda pátria.

Sua vida resume-se ao período curto de apenas 28 anos. Nasceu em 1821, e morreu em plena Guerra Civil contra a ocupação austríaca da Itália, em 1849. Mas foram anos intensos.

Ela era Aninha, Ana Maria de Jesus Ribeiro, quando conheceu Garibaldi, na passagem do chefe rebelde italiano por Laguna, em 1839. Condenado à morte pelos estrangeiros que ocupavam seu país, ele exilou-se no Rio de Janeiro em 1836; de lá, passou para o Rio Grande do Sul, onde aderiu à República Farroupilha e se tornou um dos chefes militares mais notáveis do levante gaúcho e catarinense contra o Império brasileiro.


Tela com imagem estilizada de Anita, em exposição na casa onde a heróina morou em Laguna (SC)
 

Com Garibaldi, a moça ganhou o diminutivo carinhoso dos italianos para Ana: Anita. Começou ali um romance cuja descrição como uma vida de luta não é retórica. Ela foi mulher, enfermeira e soldado ao lado de Garibaldi. De espingarda na mão, estava na linha de frente nas batalhas e, muitas vezes, usou sua condição de mulher para impulsionar os soldados que eventualmente se acovardavam.

Era um dos filhos deste solo brasileiro que, como canta o Hino Nacional, “não foge à luta”. No Brasil, o reconhecimento de seu heroísmo foi lento e acompanhou a ascensão das lutas democrática e a transformação do povo brasileiro em protagonista no cenário político. Sua ascensão ao panteão dos heróis nacionais começou após a proclamação da República, quando os precursores do novo regime passaram a ser reconhecidos e aclamados.

Mesmo assim, foi um reconhecimento difícil. Afinal, era mulher pobre que abandonou o marido para fugir com Garibaldi, e ao seu lado tornar-se uma guerreira. Durante muitos anos, ainda havia aqueles que, repercutindo velhos preconceitos, a designavam como “vagabunda” ou “china de soldado”. “Ela não foi nem uma coisa nem outra”, diz a escritora Yvonne Caputano, autora de uma biografia de Anita que, seguindo a opinião de uma historiadora gaúcha diz que ela foi “apenas uma pobre mulher que comeu o pão que o diabo amassou”, circunstância que a historiografia começa a revelar.

Heroína do povo – esta parece uma designação melhor, cujo prestígio Mussolini explorou em busca de legitimidade para seu regime. Em 1932, o ditador fascista mandou transferir seus restos mortais para o Gianícolo, em Roma, num cortejo semelhante ao de 1859, só que agora em trem especial, onde o caixão foi acompanhado solenemente por uma guarda de honra. Em Roma, o traslado para o Gianícolo foi acompanhado por mais de 200 mil pessoas, em ruas embandeiradas. Os restos mortais de Anita estão lá até hoje. O marketing fascista que festejou Anita era interesseiro, ao contrário da homenagem do povo, que persiste em Roma.

Entre os comunistas, a homenageada é a lutadora, a mulher que enfrentou e superou os preconceitos de seu tempo, e cuja memória os arrostou mesmo décadas depois, muito tempo depois de ter deixado a vida. Depois do Estado Novo, quando o Partido Comunista do Brasil voltou a ter uma vida legal, proliferaram os núcleos comunistas que adotavam o nome de Anita Garibaldi. E, em 1980, quando o PCdoB criou sua editora, não encontrou nome melhor para ela do que o da heroína.


Capa de Anita Garibaldi – A Vida de uma Heroína, uma das biografias de Anita
 

Celso Martins não é um principiante no assunto. Jornalista, ele pesquisa a vida de Anita Garibaldi e da revolução republicana catarinense desde 1989, e já escreveu bastante sobre o tema, destacando-se o livro Aninha Virou Anita, de 1999. Livro que, naquele ano, juntou-se à comemoração dos 150 anos da morte da heroína, marcados pelas biografias escritas por Yvonne Capuano e pelo jornalista Paulo Markum.

Em Laguna, há uma árvore – a Árvore de Anita – que nasceu na quilha do Seival, barco que Garibaldi comandou durante a revolução farroupilha e que foi palco do heroísmo de Anita. A árvore foi transplantada para o jardim principal da cidade na década de 1920 e lá se encontra, frondosa. A biografia Anita Garibaldi – A Vida de uma Heroína, escrita por Celso Martins (publicada em 1999 pela Editora Anita Garibaldi) é como aquela árvore: uma celebração da heroína e, ao mesmo tempo, lugar para refúgio e reflexão sobre a história de nosso povo.

* José Carlos Ruy é jornalista