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Celso Marconi: São Bernardo, a obra de Graciliano Ramos no cinema 

Um escritor brasileiro que foi muito bem aproveitado pelo cinema é Graciliano Ramos. Ele teve dois filmes feitos por Nelson Pereira dos Santos, Vidas Secas e Memórias do Cárcere. E um realizado pelo cineasta Leon Hirszman, São Bernardo. Revi este agora e estou cada vez mais entusiasmado pela qualidade estética do cinema de Leon.

Por Celso Marconi*

São Bernardo

Não tivesse Leon Hirszman morrido tão prematuramente (com 50 anos) e hoje certamente teria uma visibilidade tão grande quanto a de Nelson Pereira e de Glauber Rocha. É claro que os que são mais aproximados do Cinema Novo sabem da dimensão da criação que possuem os filmes feitos por Leon Hirszman, mas ele ficou mais escondido depois de morto. Glauber explodiu depois da morte. E Nelson estava muito bem vivo depois e na Academia Brasileira de Letras, e não deverá ser esquecido.

Nessa nova visão agora, fiquei com a impressão de que São Bernardo não é menor do que Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. São dois filmes das mesmas dimensões dramáticas. Que certamente representam transposições excelentes dos dois romances. A literatura de Graciliano é totalmente visual na sua forma de narrativa. De cada romance parece que o filme já sai sendo visto pelo espectador. Mas os dois cineastas souberam recriar toda a dimensão dramática pela nova linguagem, sem perder principalmente a profundidade. São dois filmes que podem ser exemplos de que o cinema algumas vezes chega próximo da dimensão da literatura.

Vejam como Leon Hirszman trabalhou com a narrativa oral, fazendo com que ela não ficasse pesando na narrativa imagética. A voz de Othon Bastos tem uma importância essencial para isso. Ele, o ator, foi não só o representante do personagem Paulo Onofre, mas também a voz que encaminhou todo um outro lado da narrativa estética fílmica. Enquanto vai narrando a sua estória com a fala, também vai mostrando pela imagem o seu desenvolvimento.


Paulo Honório (Othon Bastos), em cena de São Bernardo: sua voz conduz a narrativa oral

É uma montagem dos dois componentes da narrativa cinematográfica, que foram criativamente utilizados tanto quanto acontece nos filmes de Serguei Eisenstein. E, falando nesse cineasta, a verdade é que Leon Hirszman sempre foi um dos mais influenciados por Eisenstein no Brasil, fazendo de sua forma de criar cinema uma maneira pessoal. E também extremamente rica. É bom citar o curta de Hirszman, Pedreira de São Diogo.

Interessante é que o personagem Paulo Onofre não é um latifundiário. É um homem pobre que enriquece pelo trabalho explorador. E na sequência final fala disso. Talvez essa parte da narrativa tenha uma dimensão ideológica que não agrade aos puristas. Mas tanto Graciliano Ramos quanto Leon Hirszman souberam narrar com a verdade essencial à arte aparecendo. É uma estória cuja dimensão dramática é essencial, tanto como narração de uma vida pessoal frustrada quanto ao aspecto da vida social da época. Com uma secura fundamental para se aproximar da literatura de Graciliano. E se firmar como um autêntico cinema dialético.

São Bernardo tem uma beleza extraordinária. Através da imagem, de uma fotografia criada por Eduardo Escorel. De uma música que é uma concepção sonora de Caetano Veloso, um som próximo do que ele fez em torno de Asa Branca, de Luiz Gonzaga. E um som que também se aproxima do ruído do carro de boi que foi aproveitado por Nelson Pereira em Vidas Secas. De uma ambientação excelente nos lugares naturais onde a estória se passa. Como se fosse um documentário. E pelas interpretações principalmente de Othon Bastos e Isabel Ribeiro.


O cineasta Leon Hirszman, em cena do documentário Deixa que eu Falo, que apresenta sua biografia
 

Revendo um filme como São Bernardo, eu, pessoalmente, sinto quanto a nossa Cultura perdeu com a existência da ditadura de 64. Não fossem os ditadores, o Cinema Novo teria se desenvolvido como cinema brasileiro e teria chegado ao conhecimento do público. É certo que mesmo sob a ditadura foram feitos alguns filmes excepcionais, inclusive como São Bernardo, que foi realizado aqui no Nordeste em 1971. Mas o que a ditadura militar matou realmente foi a possibilidade do desenvolvimento do público. Evitou que os jovens continuassem a debater e assim criar uma consciência de vida própria, para poder conhecer o que é Arte e o que é Vida autêntica. Humana. E não robotizada. Sem origem. E nessa administração Bolsonaro estão querendo desfazer o que o golpe de 64 deixou passar. Certamente não conseguirão.

São Bernardo, o livro

Depois que revi o filme São Bernardo, de Leon Hirszman, encontrei um volume do livro de Graciliano, até bem velhinho, mas em boas condições para se ler. Reli então o romance São Bernardo. E como em poucas vezes fiquei achando que o filme tinha mais com que eu ficasse entusiasmado do que o livro. Mas isso apenas como uma observação subjetiva. Talvez uma questão de gosto.

Me deu mais prazer ver o filme do que ler o livro. Leon conseguiu fazer uma obra ou uma narração mais enxuta do que o próprio Graciliano. Ou ainda me parece: o que acontece é que o filme é mais plástico, mais belo. O livro é seco, escorreito, parece que se trata na verdade de um quase relatório. Aliás, maravilhosamente bem escrito.


Graciliano, entre Luiz Carlos Prestes (à dir.) e Candido Portinari, na filiação do pintor ao Partido Comunista do Brasil
 

São Bernardo é perfeito como uma obra de arte política. Faz toda a narrativa de um processo de um personagem, Paulo Honório, pela vida, pela criação da sua vida. Tanto como personagem se desenvolvendo na sociedade quanto ao seu íntimo, ao seu lado subjetivo. É a formação de um burguês que se apresenta.

Muita gente competente critica Jorge Amado por fazer uma literatura política e não fala em Graciliano Ramos. Simplesmente porque, por exemplo, nesse romance a política está totalmente presente – mas o que predomina é a narrativa dramática. É a criação dramática dos personagens. Se você quiser saber a história do nosso país no século 20 do ponto de vista da organização social, pode simplesmente tomar esse romance como paradigma. Particularmente, como foi mudando o latifúndio para um sistema de estrutura social mais burguesa.

 

Claramente, Leon Hirszman deu mais consistência à estória do romance entre Paulo Honório e Madalena do que a própria estruturação do personagem do Paulo. O filme é uma obra mais curta no sentido do tempo interior e o espectador busca entrar imediatamente no subjetivo em filmes como esse, São Bernardo. E mesmo um livro curto como esse tem uma dimensão de tempo mais longa e permite que o criador se espalhe por uma teia mais ampla. No caso de Graciliano Ramos, a teia consegue ser sem dúvida muito mais densa do que muitas vezes acontece com o romance de Jorge Amado. Daí penso ser por isso que o político se esconde mais na obra de Graciliano Ramos, mesmo que esteja até mais presente.


 

Enfim, filme e livro são duas obras independentes. Certo que Leon Hirszman aproveitou as ideias de Graciliano Ramos. Mas o filme tem o seu contexto único. E o romance continua com o dele. E a cultura brasileira ficou mais rica com os dois.

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8