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Claudio Daniel: Uma poética entre o som e o silêncio 

A nova geração de poetas paraibanos se destaca pelo rigoroso trabalho com a linguagem, pela originalidade temática e pelo diálogo criterioso com a tradição poética brasileira. Entre esses autores, destaca-se Guilherme Delgado.

Por Claudio Daniel*

Guilherme Delgado

O livro de estreia de Guilherme Delgado, jovem poeta paraibano, é um conjunto singular de 22 poemas, divididos em duas seções, cada uma com 11 peças, separadas por páginas em branco — organização numérica e de paginação que evidencia o caráter pensado da obra, cujo título, não por acaso, é um simples dois pontos (":"), sinal de pontuação que antecede um discurso, mas também grafismo composto de dois círculos negros, índice visual desse caderno de poemas. A unidade da obra, portanto, começa pela sua arquitetura geral, e prossegue nas unidades mínimas, que são os poemas.

Na primeira seção do livro, Caligrafias, cujo caráter metalinguístico está presente já no título, temos um conjunto de peças que dialogam com poetas, prosadores e cineastas essenciais na formação de Guilherme Delgado, como Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, Jorge Luis Borges e Stanley Kubrick. Não se trata, porém, de meras homenagens, em que o poeta parodia (do grego: “canto paralelo”) estilos consagrados para mostrar a sua perícia formal; em cada uma dessas composições, a voz de Guilherme Delgado está presente, propondo a sua própria peripécia ou releitura.

Assim, por exemplo, na Caligrafia para Borges, onde lemos: “Conter a noção de sonho / pra dar sentido de tato; / a maçã da palavra não existe, / mas seu peso, sua cor, seu formato”. Nestas linhas breves, de corte afiado e preciso, “faca só lâmina” cabralina, temos elementos da biografia, do imaginário e da escritura borgianas, mas redimensionados em outra dicção, muito distinta daquela do vate portenho. O poeta não reproduz, de modo simplificado, traços do estilo poético de Borges, mas dialoga com ele alçando sua própria voz – substantiva, elíptica, fragmentária, música situada entre a partitura e o silêncio.

Em outra composição, dedicada a Drummond, Caligrafia para Carlos, lemos: “Lição de coisas / habitando / o abismo // o fácil beira / a isso, o fóssil / até aqui é aquilo”, poema de extrema concisão dividido em duas estrofes distribuídas de maneira geométrica no espaço em branco da página. Neste poema, Guilherme Delgado evidencia qual Drummond interessa a sua pesquisa poética: o poeta de Lição de Coisas, mais substantivo que confessional, com o olhar centrado na materialidade das palavras e na busca de outras formas de associação entre as palavras, para além da linearidade discursiva.

A última peça da série Caligrafias, dedicada a Paul Valéry (poeta que, assim como Edgar Allan Poe, Mallarmé, João Cabral, pensava a poesia antes de escrevê-la) é composta de uma única linha: “Como um raio desfaz-se na clareza, aqui jaz uma compreensão”, frase enigmática de Sibila, que soa como um koan zen-budista.


 

Embora encontremos, na poesia de Guilherme Delgado, construções melódicas e imagéticas, o que predomina, talvez, seja a dimensão do pensamento, a logopeia: reflexão sobre a linguagem dentro da própria linguagem. Na segunda parte do livro, aqui o eco, temos 11 peças sem títulos, identificadas apenas por algarismos romanos. Não há unidade temática entre elas, mas uma relação estrutural: são composições ainda mais secas, concisas, geométricas, elípticas, como as ruínas de um discurso, em que o poeta desenvolve abruptas partituras como esta: “A fala é falo / afiado / trespassa a fenda / do grito / ampara o silêncio / tesado / faz filtro de ruídos / rimados / tem raiva mas ri / se relaxa / desembaraça / o pelo-novelo / quebra o gelo / calado / e ainda hoje / tem o seu apelo / preservado / pois haja / o que / houver / ver é ágil”.

O aspecto lúdico dos poemas de Guilherme Delgado – ponto de contato (aliás, não o único) com a estética barroca, faz da leitura de seu livro um exercício ao mesmo tempo inteligente e prazeroso, onde descobrimos enigmas, paradoxos, insights, iluminações de um poeta em estado pleno de poesia. Enfim :