O Nordeste do meu Brasil

Cresci no subúrbio de Bonsucesso, na cidade do Rio de Janeiro, ouvindo que: “O sertanejo antes de tudo é um forte”. Frase essa, que mais tarde na minha escola primária fui saber: pertencia a obra “Os Sertões”, de Euclides da Cunha.

Por Hélio de Mattos*

Retirantes Portinari - Retirantes, de Cândido Portinari

Aos 10 anos de idade entendia um pouco mais daquele bairro que morei até os 18 anos, pouco antes de entrar para a universidade. Era constituído de trabalhadores, a maioria veio do Nordeste e de Portugal. Pela manhã, muito cedo, as ruas eram movimentadas por aqueles que iam para as fábricas e para comércio. Os botequins que abriam as cinco horas da matina e ficavam lotados para o tradicional pão com manteiga e café com leite no copo de vidro. Mais tarde passavam os vassoureiros, tintureiros, amoladores de facas, tripeiros, os peixeiros e os verdureiros.

Os “paraíbas” iam para as fábricas e os serviços da construção civil. Eram eles os que trabalhavam para tornar nossa Cidade Maravilhosa. Estávamos no ano da graça de 1965 e nas escolas nossas professoras nos preparavam para o IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro. Foi quando ouvi pela primeira vez a palavra migrante. Ali entendi a dimensão daqueles que vieram fugidos da grande seca de 1934, viajando semanas nos caminhões paus de arara e conquistaram a vida no Rio de Janeiro. Meu pai foi um deles. Aos 18 anos saiu de Santana do Cariri, no Ceará, próximo do Potengi. Viajou durante duas semanas em um caminhão pau de arara para fugir da terrível seca. Deixou pai, mãe e as duas irmãs – Voltou para rever as irmãs somente aos 59 anos de idade. Foi comigo num avião da Varig até Juazeiro do Norte, pegou um ônibus até o Crato e depois um carro alugado até Potengi – Eles chegavam no Campo de São Cristóvão exaustos, com muita fome, sede e esperança. Dali partiam para as obras de construção civil da Zona Sul e para as fábricas do subúrbio. Foram morar na Rocinha, nas favelas do Morro do Pinto, Catacumba, Esqueleto no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas e ao longo da Avenida Brasil nas antigas palafitas da Maré e no Parque União.

Foram descritos no cordel de Azulão “O Campo de São Cristóvão/ É palco de tradição/ Dos primeiros nordestinos /Que deixaram seu torrão/ Sua família querida /Vieram tentar a vida /Viajando de caminhão”

Aos domingos pela manhã, choravam quando ouviam no rádio Luiz Gonzaga cantar os versos do poeta popular Patativa do Assaré em Triste Partida: “Distante da terra/Tão seca, mas boa/Exposto à garoa/A lama e o baú/(Meu Deus, meu Deus)/Faz pena o nortista/Tão forte, tão bravo/Viver como escravo/No norte e no sul/(Ai, ai, ai, ai)”

Constituíram famílias, filhos e filhas e novos bairros foram surgindo e ao longo da Avenida Brasil formou-se o Complexo da Maré (Sem Terra, Parque União, Rubens Vaz, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro, Timbau, Vila do João e Vila Esperança), hoje com aproximadamente 450 mil habitantes. Esses “paraíbas” em 1966 também construíram os imensos prédios e edifícios da Ilha do Fundão para posterior transferência para o Campus das atuais estruturas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nos dias atuais boa parte dos seus parentes, netos e filhos constituem a maioria dos doze mil trabalhadores em educação daquela universidade.

Em 1976 a Escola de Samba Em Cima da Hora cantava em seu enredo o sofrimento a diáspora do Nordestino “De sofrimento e solidão/A terra é seca/
Mal se pode cultivar/Morrem as plantas e foge o ar/A vida é triste nesse lugar/Sertanejo é forte/Supera miséria sem fim/Sertanejo homem forte”.

A lembrança, desse samba enredo da Em Cima da Hora, veio a mim na última sexta feira (19), quando assisti pela televisão o presidente Bolsonaro despejar seu desprezo, ódio e preconceito contra os governadores nordestinos. Ao se referir a eles, chamou-os de “paraíbas” em tom depreciativo que tanto ouvi na minha infância no bairro de Bonsucesso. É muito mais do que preconceito. Ele se insere na grande resistência que os governadores do Nordeste estão fazendo contra o governo mais antipatriótico que já tivemos em nosso país. Seu ódio expressa, o que aconteceu no Brasil nos últimos anos: a não aceitação da melhoria da qualidade de vida da população pobre, em especial a nordestina, por parte das elites brasileiras e parcela da classe média. De 2001 a 2103 a região cresceu muito mais que a média nacional. Deixou de ser apenas um bolsão de pobreza e virou um dos mercados mais dinâmicos do país. Fruto da injeção de dinheiro público na economia local (com obras de infraestrutura e programas de renda mínima), crescimento de empresas locais e atração de empresas multinacionais e de outras regiões do país.  De 2002 a 2012, a região criou mais postos de trabalho que a média nacional. O impacto direto desse desenvolvimento pode ser visto na evolução da renda média por habitante. No Nordeste, ela foi maior do que a média nacional. Isso permitiu uma inversão no tradicional movimento migratório de nordestinos para o Sudeste que encolheu 5%, a partir dos anos 2000. Em contrapartida, nesse mesmo período, o número de não nordestinos que decidiram se estabelecer na região cresceu 14%.

Nas novas universidades federais, criadas pelos governos Lula e Dilma, formaram-se médicos, engenheiros e advogados pelo ProUni e o Fies em todo o Nordeste. Estudantes do Ceará e Piauí ganham medalhas nas Olimpíadas de Matemáticas e Física. A cidade de Sobral, no Ceará, é um modelo de educação nacional, exemplo estudado hoje em vários países do mundo. O Nordeste do meu Brasil cresceu. Seus migrantes no Rio de Janeiro conquistaram a cidade com muito trabalho. São mais de 50% da população carioca, que Bolsonaro insiste em ignorar. Como no poema de Vinicius de Moraes “O operário em construção”: “Mas ele desconhecia/ Esse fato extraordinário: Que o operário faz a coisa / E a coisa faz o operário.”

Fazendo uma analogia entre o Nordeste e o Rio de Janeiro: o operário nordestino faz a Cidade Maravilhosa e a Cidade Maravilhosa faz o Nordestino.