Mesmo sem chegar à Lua, União Soviética venceu EUA na corrida espacial

Há exatamente 50 anos, quando a Apollo 11 chegou à Lua em 20 de julho de 1969 e o astronauta Neil Armstrong deu seu “grande salto para a humanidade”, tudo parecia perdido para a União Soviética (URSS). Milhões de pessoas no mundo todo viram essas imagens na televisão. Na história popular, os Estados Unidos se tornaram os grandes vencedores da corrida espacial contra os soviéticos. Nada mais falso!

Valentina Tereshkova e Yuri Gagarin

Na realidade, os verdadeiros pioneiros da exploração espacial foram os astronautas soviéticos – ou melhor, os “cosmonautas”. Grande parte dos avanços conquistados à época e utilizados até hoje na Estação Espacial Internacional (EEI) se devem a conhecimentos e inovações descobertas pela União Soviética.

Esta é a conclusão de um excelente documentário produzido pela BBC em 2016, Astronautas: Como a Rússia Venceu a Corrida Espacial. O projeto teve acesso a documentos importantes e entrevistou protagonistas da extraordinária briga entre soviéticos e americanos para conquistar o Universo.

Ao levar ao espaço o primeiro satélite, o primeiro ser humano e a primeira estação orbital, a União Soviética conseguiu vencer os Estados Unidos, grande rival na Guerra Fria. O programa espacial americano, desenvolvido sob orientação do engenheiro alemão Wernher von Braun, era mais sofisticado e contava com mais fundos. Mesmo assim, a nação erguida por Lênin e Stálin sobressaiu. Mas como eles fizeram isso?

As origens do programa espacial da URSS vêm das ruínas da Segunda Guerra Mundial. Quando os americanos lançaram a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, nasceu uma nova ordem mundial. O poder e a influência não se mediriam mais em termos de esforço humano – mas, sim, de avanços tecnológicos. Se a União Soviética queria ter influência internacional, ela deveria remontar de forma bastante veloz a enorme vantagem que os Estados Unidos haviam “roubado” dela.

Em apenas quatro anos, os soviéticos produziram a bomba atômica. “Como era muito mais pesada que a dos americanos, precisaram desenvolver um foguete mais poderoso para transportá-la, o que acabou impactando o programa espacial”, explica Gerard de Groot, professor de História Moderna da University of St Andrews, no Reino Unido.

A pessoa a quem encarregaram a tarefa foi o engenheiro Sergei Pavlovich Korolev, considerado o pai do programa espacial soviético. Em 1939, o líder da URSS, Joseph Stalin, o havia declarado inimigo do Estado. Mas, diante da necessidade de mentes brilhantes no início da Guerra Fria, decidiu-se dar a ele uma nova oportunidade.

O R-7

“Korolev não era cientista, mas era um gênio de gestão. Era um líder, uma figura inspiradora, um político que sabia mover as alavancas do poder e voltar à realidade das metas”, disse o especialista em História do Espaço Asif Siddiqi, da Universidade Fordham de Nova York. O governo o considerava tão importante do ponto de vista estratégico que, para protegê-lo de qualquer tentativa de assassinato, manteve sua identidade em segredo até seus últimos dias. Ele era conhecido apenas como “o chefe estrategista”.

Em 1957, Korolev concluiu sua obra-prima, o foguete R-7 Semyorka, nove vezes mais poderoso que qualquer outro lançador criado até então. Após várias tentativas malfadas, o R-7 foi testado com sucesso e conseguiu voar por 5,6 mil quilômetros até a península de Kamchatka. Foi o primeiro míssil balístico intercontinental e, com ele, Korolev transformou a União Soviética em uma superpotência global.

No entanto, o destino do R-7 não era se transformar em uma arma. “Como míssil, ele era ruim. Demorava-se muito para prepará-lo para o disparo. Enquanto foram desenvolvidos outros foguetes mais eficientes, o R-7 foi dedicado exclusivamente à exploração espacial”, conta o ex-astronauta soviético Georgei Grechko.

Uma vez que contava com um foguete apto, Korolev queria ser o primeiro a demonstrar que as viagens espaciais eram possíveis. Com esse objetivo, seus engenheiros desenvolveram um satélite simples, o Sputnik. Era apenas um transmissor de rádio coberto por uma esfera de metal. Em 4 de outubro de 1957, o Sputnik foi colocado em órbita e começou a enviar sinais de rádio à Terra – um “bip” que os Estados Unidos se esforçaram para decodificar, mas que na realidade não continha nenhuma mensagem.

O mundo ficou fascinado. Entusiastas formavam longas filas diante dos telescópios disponíveis para poder ver a “segunda Lua” cruzando o firmamento. O Sputnik foi uma jogada de mestre de propaganda e, a partir disso, o líder soviético Nikita Kruschev quis mais: ele pediu a Korolev outra grande missão espacial para as comemorações de 7 de novembro, o aniversário da revolução bolchevique de 1917.

Fazer isso dentro de um mês parecia impossível. No entanto, no dia 3 de novembro de 1957, a União Soviética enviou ao espaço outro satélite, mas desta vez havia um passageiro a bordo: Laika, uma cadela vira-lata encontrada em Moscou. Durante muito tempo, os soviéticos afirmaram que a cadela sobreviveu em órbita por vários dias, mas em 2002 admitiram que os controles climáticos falharam e que o animal morreu em apenas seis horas por causa de um superaquecimento.

Ainda assim, Laika deu aos soviéticos outra vitória e mais propaganda – além de uma nova dor de cabeça para os Estados Unidos. “Nos Estados Unidos, acreditavam que se a URSS era capaz de levar um animal ao espaço, em breve haveria condições de colocar um ser humano em órbita”, explicou o historiador De Groot.

O sorriso de Yuri Gagarin

No início da década de 1960, 20 potenciais astronautas eram treinados em segredo em uma zona rural da Rússia – entre eles, o jovem Alexei Leonov. “Cada dia, corríamos 5km e nadávamos 700 metros. Também saltávamos em paraquedas; eu cheguei a fazer uns 200 saltos”, conta Leonov.

Apesar do treinamento físico, os cosmonautas precisavam se preparar para os rigores do espaço. Deviam ser capazes de resistir à enorme força na decolagem e aterrissagem. Eram isolados por dias em quartos antirruídos para testar a experiência psicológica. O pior era a preparação para a eventualidade de a cápsula começar a girar sem controle no espaço. “Era algo muito difícil de aguentar”, relembra o ex-astronauta Georgei Grechko. “Alguns ficavam pálidos, outros verdes. E logo vomitavam.”

A pré-seleção do primeiro ser humano que iria ao espaço ficou reduzida a dois nomes: Yuri Gagarin e Gherman Titov. “Korolev teminou escolhendo o filho de camponeses, Gagarin”, disse Grechko. “Pensávamos que o mais inteligente e educado era Titov. Mas o chefe considerou aspectos em que nós, como engenheiros, não havíamos pensado: quão bonito era o candidato, seu sorriso. E tinha razão.”

O “engenheiro chefe” sabia que a missão já era um sucesso, o rosto de Gagari estaria em todos os jornais do mundo. No dia 12 de abril de 1961, Gagarin chegou aonde nenhum ser humano havia chegado antes: a órbita da Terra. A bordo da cápsula Vostok, ele deu uma volta ao planeta em uma hora e 48 minutos. “Estou olhando para a Terra”, disse, ao se comunicar com o centro de controle. “Vejo as cores das paisagens, bosques, rios, nuvens. Tudo é muito bonito”.

Gagarin foi recebido como um herói na União Soviética e viajou pelo mundo levando seu sorriso triunfal. Era a encarnação do domínio da União Soviética na corrida espacial. Com isso, os americanos necessitavam desesperadamente de um triunfo sobre a URSS – e o presidente John F. Kennedy estabeleceu uma meta ambiciosa: “Escolhemos chegar até a Lua ainda nesta década.”

Com a economia no auge, os Estados Unidos podiam investir grandes somas de dinheiro no desenvolvimento de um programa lunar. Do outro lado, os governantes da União Soviética não estavam dispostos a financiar uma aventura tão cara. No lugar disso, Korolev lançou uma série de missões menos custosas à órbita baixa da Terra – e fez questão de “cantar vitória” para reforçar sua propaganda. Entre elas, destacam-se duas de 1963: o voo orbital mais longo da história até aquela data (que durou cinco dias) e a primeira mulher a ir ao espaço, Valentina Tereshkova.

No dia 18 de março de 1965, mais uma conquista: Alexei Leonov se tornou o primeiro ser humano a realizar uma caminhada espacial. “Korolev nos havia dito: ‘Assim como um marinheiro a bordo de um navio deve ser capaz de nadar no oceano, um astronauta deve saber flutuar no espaço’”, lembra Leonov.

Rumo à Lua

O feito de Leonov marcou o fim da era de ouro do programa espacial da URSS, ao que se somou uma série de tragédias. No dia 14 de janeiro de 1966, Korolev, a figura inspiradora da exploração soviética do cosmos, morreu depois de uma cirurgia de rotina da qual não conseguiu se recuperar.

Quem o substituiu foi Vasily Mishin, que carecia da visão e da capacidade de gestão do “estrategista chefe”. Mas o pior ainda estaria por vir: em 26 de março de 1968, Yuri Gagarin, o sorridente e emblemático símbolo do domínio espacial soviético, morreu durante um voo teste. Foi uma grande tragédia nacional.

Menos de um ano depois, o N1, o foguete de titânio que a URSS usaria para sua aventura lunar, explodiu e deixou a base de lançamento inutilizada. Com os soviéticos fora da corrida, os americanos conseguiram o que parecia impossível: em julho de 1969, a Apollo 11 chegou à Lua.

Os soviéticos se esqueceram rapidamente da Lua e fixaram uma nova meta que ressuscitaria seu programa espacial: a colonização. Eles buscariam uma forma de viver e trabalhar no espaço. No dia 19 de abril de 1971, eles lançaram em órbita a Salyut 1, primeira estação espacial temporal da história. Três astronautas viveram nela por três semanas. Depois disso, vieram outras missões e estadias cada vez mais prolongadas.

No dia 20 de fevereiro de 1986, enquanto os americanos se concentravam em voos de curta duração com ônibus espaciais, os soviéticos colocaram na órbita terrestre a primeira estação permanente, a MIR, que foi construída ao longo de uma década. Com 31 metros de largura, 19 de comprimento e 27, 7 de altura, essa estrutura se transformou em um enorme laboratório suspenso, com módulos separados para astrofísica, ciência dos materiais e estudo da Terra. Equipes de astronautas visitavam a estação por períodos de um ano e se tornavam verdadeiros especialistas na vida no espaço.

Uma nova era de cooperação espacial

Ao final de 1991, enquanto a MIR orbitava o planeta, a União Soviética se dissolveu. O programa espacial soviético passou às mãos russas e a falta de dinheiro para mantê-la ameaçava sua existência. Em Washington, o medo era que diversos engenheiros aeroespaciais que ficaram desempregados fossem para o Irã ou para a Coreia do Norte.

Por isso, os Estados Unidos propuseram à Rússia que os dois países se unissem na exploração do Universo e, depois de décadas de rivalidade, as duas potências se tornaram “sócias”. Era uma relação conveniente para ambos: os americanos se beneficiariam da experiência dos astronautas que haviam passado longas estadias no espaço, e os russos se manteriam na ativa com o dinheiro dos Estados Unidos.

Como primeiro passo, astronautas americanos foram viver e trabalhar na MIR. Pouco tempo depois, outras dezenas de representantes de outros países também foram para lá.

Quando a MIR foi desintegrada e voltou à Terra, em 2001, sua substituta, a Estação Espacial Internacional (EII) já estava sendo colocada em órbita. Era a primeira aventura totalmente internacional no cosmo: 15 agências espaciais colaboravam para construir uma estrutura quatro vezes maior que a MIR. “Tínhamos um grande conhecimento das grandes estadias no espaço, de como afetavam uma pessoa. Assim, nos unimos ao projeto e compartilhamos tudo o que sabíamos”, conta o astronauta Alexander Lazutkin.

Certamente, a EEI é a prova das conquistas do programa espacial da URSS durante 50 anos de exploração do Universo. Seu sistema de suporte vital está baseado no das estações Salyut e MIR. Os trajes que foram utilizados são “made in Rússia”, versões atualizadas daqueles que Alexei Leonov usou na primeira caminhada espacial da história.

Desde 2011, a única maneira de chegar a EEI é por meio de uma cápsula Soyuz montada em um foguete R-7, ambas tecnologias que, ainda que tenham sido modernizadas, têm sua essência mantida nos desenhos de Sergei Korolev há meio século. “A URSS perdeu a corrida para chegar à Lua, sim. Mas a contínua presença do ser humano em órbita se deve muito à determinação soviética e russa por conquistar o espaço”, conclui o historiador americano Gerard de Groot.

Da Redação, com informações da BBC