O Plano Real, 25 anos depois, por Paulo Nogueira Batista Jr.

 Um plano que começara de forma brilhante teve desfecho melancólico. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá.

Equipe Plano real

O Plano Real, que acaba de completar 25 anos, foi o mais bem-sucedido dos vários planos de combate à inflação e teve um toque de originalidade: a URV – a Unidade Real de Valor, mecanismo de transição que preparou a introdução da nova moeda, o real. Com a sua introdução, inaugurou-se uma época de inflação baixa, quase sempre controlada, destoando da instabilidade monetária que caracteriza a maior parte da história econômica do País.

O plano não era perfeito, longe disso. Ele se desdobrava em três fases a serem implementadas sequencialmente; a primeira e a terceira logo se mostrariam problemáticas. A Fase I era a do ajuste fiscal que lançaria os fundamentos do plano. A URV – uma quase moeda paralela à moeda oficial, o cruzeiro real – seria a Fase II. E a Fase III consistiria na introdução da nova moeda em substituição ao cruzeiro real, a ser retirado de circulação. Em resumo, o Plano Real era uma reforma monetária em duas etapas, antecedida de medidas de contenção déficit público.

A Fase I foi muito incompleta, o que lançou dúvidas, desde o início, sobre a sustentabilidade do Plano Real. A Fase III acabou prejudicada pela valorização inicial do real em relação ao dólar, que se tornaria – mais do que a fragilidade das contas públicas – o grande calcanhar de Aquiles do plano. Mas o espaço não permite tratar de todos esses problemas; vou me concentrar no que o plano tinha de melhor – a URV. Essa foi a contribuição original dos economistas tucanos à política econômica brasileira, especialmente (pelo que sei) de André Lara Resende e Pérsio Arida. O Brasil poderia até dar lições de como fazer uma hiperestabilização, isto é, de como recuperar a estabilidade monetária nacional em condições de hiperinflação.

O problema é que não teríamos alunos! É que a URV respondeu às peculiaridades de uma situação rara, provavelmente única. São poucos os casos de hiperinflação na história mundial, e ainda mais raras são as experiências como a nossa, de décadas seguidas com inflação elevada. Talvez só a Argentina tenha tido experiência inflacionária ainda mais longa ou pontuada por surtos mais intensos.

No entanto – e chego aqui a um ponto crucial –, na Argentina e em diversos outros países latino-americanos a hiperinflação ou a inflação persistentemente elevada haviam resultado em dolarização parcial da economia, com o dólar substituindo em grande parte as moedas nacionais como unidade de conta, reserva de valor e até meio de pagamento. No Brasil, não. O que tivemos aqui, desde a década de 1960, foi a correção monetária, o ajuste periódico dos preços, salários, contratos, tributos, taxa de câmbio e instrumentos financeiros por índices de preços domésticos.

A URV foi uma resposta inteligente a essa situação peculiar. O caminho até ela foi acidentado, como costumam ser as experiências de política econômica. Embora não estivesse no governo, tive condições de opinar sobre a formulação do plano. Isso foi possível por dois motivos. Primeiro, porque uma vantagem do Plano Real, quando comparado a seus antecessores fracassados desde o Plano Cruzado, é que ele não dependia do fator surpresa e podia ser pré-anunciado. Além disso, eu contava com a simpatia do presidente Itamar Franco e pude até interferir, por seu intermédio, em alguns aspectos do programa, inclusive na URV. Nunca escrevi sobre essa participação indireta, que aconteceu sem qualquer acesso, cabe frisar, a informações confidenciais do governo. Aproveito o aniversário do Plano Real para contar o episódio e, sobretudo, para contribuir um pouco para o resgate do seu aspecto mais brilhante, que foi o mecanismo monetário de transição.

A URV foi introduzida em março de 1994. Quando os planos para sua criação foram anunciados alguns meses antes, logo percebi que era uma grande ideia, que poderia ser bem adaptada às especificidades da situação monetária brasileira. A ideia, em poucas palavras, era introduzir em paralelo ao cruzeiro real uma quase moeda indexada. O “quase” é crucial aqui. Se a URV tivesse sido uma moeda plena, desempenhando todas as funções monetárias, a sua introdução desencadearia uma inflação brutal na moeda velha – como ocorrera em 1946, com o pengo, a moeda da Hungria de então. No caso da Hungria, a introdução de uma moeda indexada oficial plena (o pengo fiscal), em paralelo ao pengo, levou ao abandono generalizado da moeda velha e a uma aceleração inflacionária jamais vista. Se a URV fosse configurada como moeda plena, a exemplo do pengo fiscal, haveria acentuada aceleração da inflação em cruzeiros reais, instabilidade econômica e queda dos salários reais.

Com a URV, buscava-se induzir a convergência da indexação na economia a uma nova referência oficial na qual a inflação seria baixa ou inexistente. A moeda indexada coexistiria com o cruzeiro real por alguns meses até que, numa data preestabelecida, ela fosse convertida na nova moeda, ocasião em que o componente de realimentação inflacionária seria eliminado de uma só vez, reduzindo abruptamente a inflação. O calendário do Plano Real estava ajustado ao calendário eleitoral, diga-se de passagem, aspecto crucial que deixo, entretanto, de lado para focar na questão monetária.

A minha impressão, na época, era que havia um risco importante: inclinações dolarizantes dentro da equipe econômica. Havia até mesmo quem defendesse publicamente – não só no governo, mas também no exterior, notadamente no Banco Mundial – a aplicação ao Brasil do modelo argentino de semidolarização, isto é, o chamado o conselho da moeda (currency board). Um dos mais destacados integrantes da equipe econômica, André Lara Resende, havia defendido essa abordagem em artigos publicados na imprensa a título pessoal. A Argentina parecia um sucesso naqueles tempos; poucos percebiam os imensos riscos que o nosso vizinho estava correndo com aquela semidolarização, que levaria ao colapso da economia alguns anos mais tarde.

No governo brasileiro, entretanto, pelo menos uma pessoa se opunha firmemente a qualquer proposta desse tipo: ninguém menos que o presidente da República, Itamar Franco. Fiz chegar a ele em várias ocasiões, por meio de amigos comuns, a percepção de que a URV, anunciada pela equipe econômica, era um mecanismo muito útil, mas que havia o risco de ela fosse usada como ponte para a dolarização da economia. Ao mesmo tempo, fazia essas ponderações publicamente, em artigos e entrevistas.

A questão central era: com base em que ajustar a URV? O dólar era a opção para a qual parecia se inclinar inicialmente a equipe econômica. Opção preocupante e até perigosa. Poderia preparar o terreno para que o real nascesse estreitamente vinculado ao dólar, a exemplo do que se via na Argentina. Além disso, no período de vigência da URV, o que se estimularia, na verdade, seria a convergência da indexação à taxa de câmbio, ou seja, a vinculação de preços, salários e contratos à moeda estrangeira.

Insisti em argumentar, junto ao presidente Itamar e em público, que a dolarização da URV era perigosa e totalmente desnecessária. O mais consistente com a realidade brasileira seria instituir a correção monetária da URV, vinculando-a um índice geral de preços, de escopo nacional. O Banco Central deveria, no meu entender, operar para manter a taxa de câmbio rodando, sem rigidez e sem qualquer regra, em torno desse mesmo índice, evitando fixar ou estabilizar a taxa URV/dólar. Sugeri, além disso, que quando o real entrasse em circulação, em substituição ao cruzeiro real e à URV, a taxa de câmbio passasse a ser administrada de forma a oscilar em torno da paridade inicial real/dólar – sem, entretanto, anunciar qualquer regra para o câmbio em termos nominais ou reais. Outro aspecto importante: não cabia, do meu ponto de vista, começar com paridade unitária em relação ao dólar, pois isso levaria a uma complicação inicial perfeitamente evitável no dia-a-dia e – mais importante – poderia criar problemática ligação simbólica da nova moeda com a moeda estrangeira.

Quando o formato final da URV foi anunciado, ficou claro que haviam prevalecido as preocupações anti-dolarizantes do presidente Itamar. Determinou-se – que a URV seria ajustada com base na evolução de três índices de preços amplamente utilizados no País. O presidente me mandou mensagem, satisfeito: “Gostou? Três índices nacionais!”. Contaram-me que, em face da resistência de Itamar, Pérsio Arida aparecera com a fórmula dos três índices. Além disso, a medida provisória que criou a URV tornou nulos de pleno direito os contratos indexados ao câmbio, a não ser quando autorizados por lei federal.

Fiquei contente, claro, mas logo vieram as decepções. A equipe econômica contornaria, com habilidade, as preocupações do presidente da República. Os economistas dos tucanos continuavam flertando, aparentemente, com a dolarização. A taxa de câmbio passou a seguir os três índices, o que equivalia, na prática, a estabelecer paridade unitária entre o dólar e a URV. Esta última ficou, no meu entender, sobredeterminada, isto é, vinculada ao mesmo tempo e de modo redundante a índices domésticos e ao dólar. Criou-se assim, desnecessariamente, uma indução à dolarização dos preços internos.

Como seria de prever, o real começou, em 1º de julho, com paridade unitária em relação ao dólar. Pior: estabeleceu-se, por lei, a paridade unitária como teto para a taxa de câmbio. Isso abriria caminho para uma enorme valorização inicial do real, no segundo semestre de 1994. A apreciação cambial acelerou em alguma medida a queda da inflação, mas não era indispensável, a meu ver, para alcançar a estabilização monetária. O elemento central do Plano Real, naquela fase inicial, era a desindexação ampla e imediata, proporcionada pela URV, que teria sido capaz, mesmo sem apreciação cambial, de provocar grande queda da inflação.

A valorização do real, ao longo dos anos seguintes, se revelaria a mais importante fragilidade do programa de estabilização. Abriu-se enorme desequilíbrio nas contas externas, o que deixou a economia vulnerável. Depois de inúmeras peripécias e pressões de balanço de pagamentos, o Brasil acabaria sofrendo uma crise cambial aberta e caindo nos braços do FMI.

Um plano que começara de forma brilhante teve desfecho melancólico. Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá.