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As sobrancelhas da Mona Lisa 

Meu filho Pedro, de 9 anos, acreditou na história de que La Gioconda, a Mona Lisa é, na realidade, o autorretrato do Leonardo da Vinci – a cria mais genial de Florença, de onde também vieram Dante, Maquiavel, Botticelli e Donatello. Eu, quando estava com a idade do Pedro, não tinha uma opinião formada – mas tinha, sim, muito medo dessa mulher assustadora.

Por André Cintra

Mona Lisa

Havia uma reprodução do quadro no apartamento dos meus avós – acho que meu tio Givaldo a ganhou. Ficava bem em frente ao corredor da casa. Se eu voltasse da cozinha ou do banheiro para a sala, dava de cara com a figura. Antes que eu lesse qualquer coisa a seu respeito – e soubesse quem era ou não era a Mona Lisa –, desconfiei se tratar de uma mulher morta, mas de olhos vivos. Mortos de olhos arregalados confundem e assombram as crianças. Sem contar a imagem ao fundo da Mona Lisa, com lagos e montanhas num estilo meio primitivo e sombrio. O curioso é que, mais tarde, fui morar na casa dos meus avós, dos 17 aos 24 anos, e a Mona Lisa começou a ficar despercebida, naturalizada. Eu mal a notava, nem sei se ainda está lá.

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Que eu tenha ciência, a obra de arte que mais levou pessoas ao suicídio foi Os Sofrimentos do Jovem Werther. Quando Goethe a publicou, há 245 anos (em 1774), a história da desilusão amorosa de Werther – que se mata com um tiro na cabeça porque sua paixão por Charlotte não era correspondida – marcou época. Jovens alemães passaram a se vestir como o jovem personagem. Ao seu suicídio, fictício, seguiram-se vários outros, reais, a ponto de o livro ter sido proibido na Alemanha. Um bispo acusou Goethe de imoralidade. Era o “efeito Werther”.

Ouso dizer que já existiu, de forma mais diluída, um “efeito Mona Lisa”. O quadro já tinha mais de 300 anos ao chegar ao Louvre, em 1815, e ser exposto ao público pela primeira vez. A partir daquele momento, a imagem de Mona Lisa passou a causar comoção e distúrbios. “As mulheres da sociedade adotaram o visual La Gioconda, espanando pó amarelo em seus rostos e pescoços para sugerir sua pele dourada, imobilizar seus músculos faciais e imitar seu sorriso. Nos cabarés parisienses, os dançarinos vestidos como La Gioconda faziam um atrevido can-can”, escreveu a jornalista Dianne Hales no livro Mona Lisa – Uma Vida Descoberta.

A mais misteriosa das mulheres, sem sobrancelhas nem joias, mas de “olhos límpidos e ardentes”, despertava sentimentos contraditórios. Parecia ora uma santidade, ora um símbolo sexual – os detratores chegaram a chamá-la de prostituta. Provocava lágrimas e orações, recebia flores e poemas, era objeto de cartas apaixonadas e reações passionais. “Mona Lisa recebeu muitas cartas amorosas. Por um tempo, eram tão picantes que o quadro foi posto sob proteção policial”, registrou a escritora R. A. Scotti.

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O sorriso de La Gioconda é um capítulo à parte do “efeito Mona Lisa”. Em 23 de junho de 1852, o jovem artista francês Luc Maspero, obcecado por tão perturbadora imagem feminina, se atirou do quarto andar de um hotel parisiense, deixando um bilhete suicida: “Por anos, tenho lutado, desesperado, em busca de uma resposta para seu sorriso. Prefiro morrer!”. Em 1910, outro admirador deu fim à própria vida de modo dramático. Depois de entrar no Louvre e olhar para o quadro pela última vez, o homem se matou com um tiro.

Um ano depois, na noite de 21 para 22 de agosto de 1911, a Mona Lisa sumiu do museu. Seu fascínio, no entanto, cresceu após o roubo – muitos queriam subir a escadaria do Louvre só para ver o “espaço em branco” onda ficava a pintura. A tela foi recuperada dois anos depois, e o ladrão foi identificado como Vincenzo Peruggia, um vidraceiro italiano que prestava pequenos serviços ao museu. Para se defender, Peruggia alegou patriotismo – dizia não suportar ver a Mona Lisa fora de seu país de origem. Depois, mudou de versão: “Fui vítima de seu sorriso. Eu me apaixonei por ela”.

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Para mim, a coisa mais original e fantástica na pintura do Da Vinci não é o sorriso da Mona Lisa – alvo de tantas teorias há mais de 500 anos –, mas, sim, as sobrancelhas. Ou melhor, a ausência delas. Ou, melhor ainda, o enigma sobre isso. Demorei muito tempo para reparar que a Mona Lisa não as possuía. No Renascimento, mesmo que a mulher tivesse sobrancelhas salientes e nervosas como as do Claudio Lembo, era moda omiti-las em pinturas.

O problema é que a Mona Lisa é um projeto inacabado, ainda que Salai, “o diabinho”, assistente e parceiro de Da Vinci, tenha dado as últimas pinceladas no quadro após a morte do pintor. Se vivesse por mais anos, talvez Da Vinci incluísse as sobrancelhas numa etapa posterior. Na década passada, um pesquisador recorreu ao scanner mais moderno para “provar” que Da Vinci até pintou as sobrancelhas – mas estas teriam desaparecido com o tempo, talvez por falhas em alguma restauração.

Há quem lute para achar pelo em ovo – e há quem se empenhe para ver sobrancelhas na Mona Lisa. Quando eu era adolescente, uma das pegadinhas entre jovens cinéfilos era perguntar qual era a cor dos olhos do bebê de Rosemary – olhos satânicos que mal aparecem, a não ser numa breve tomada, no minuto final do filme sinistro do Polanski. Na França, a diatribe é questionar os sabichões sobre o formato das sobrancelhas da Mona Lisa. Tire suas conclusões!

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Em 2018, o Museu do Louvre recebeu pouco mais de 10 milhões de visitantes, atraídos sobretudo pela icônica tela de Da Vinci. O público que vai diariamente à Sala dos Estados, no primeiro andar do museu, para ver a Mosa Lisa, é de impressionantes dezenas de milhares de pessoas. “A cada dia, recebemos uma cidade inteira nesta sala”, resumiu, recentemente, Jean-Luc Martinez, presidente do Louvre. Em alguma medida, o efeito “Mona Lisa” persiste.