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Mário de Andrade chamou Os Sertões de falso; Flip viu racismo no livro

Chegou ao fim, neste domingo (14), a 17ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que homenageou o escritor Euclides da Cunha (1866-1909). Mas as críticas ao autor de Os Sertões, ao que tudo indicam, permanecerão no ar.

Euclides da Cunha

Ainda no domingo, a coluna do jornalista Lauro Jardim (O Globo) apimentou a polêmica. Segundo o colunista, se Mário de Andrade (1893-1945) estivesse vivo e comparecesse à Flip 2019, “certamente faria um barulho desgraçado”. O poeta e escritor paulista acusava Os Sertões de ser “um livro falso”.

Foi o que Mário concluiu quando viajava pelo Nordeste em 1928. A obra-prima de Euclides, escreveu ele, “é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopeia”.

Na opinião do autor de Macunaíma, Euclides parecia não conhecer a fundo a realidade sertaneja. “Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha”, escreveu Mário. “Chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação.”

Essa viagem de Mário de Andrade ao Nordeste e as que ele fez a Minas Gerais e à Amazônia estão pela primeira vez detalhadas na biografia Em Busca da Alma Brasileira (Sextante/Estação Brasil), escrita por Jason Tércio, a ser lançada em 12 de agosto. O novo livro, portanto, deve manter viva a discussão.

Se a visão de Mário ficou distante da Flip 2019, Euclides não escapou de críticas ferinas ao longo da programação. Autor de obra canônica da literatura brasileira, Euclides foi “denunciado” por ser racista. Os Sertões, por exemplo, tem um trecho famoso: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Logo depois, há outra frase, quase nunca lembrada. “Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.”

Não é de hoje que o adjetivo acompanha o escritor, jornalista e engenheiro fluminense. Em A Terra, o Homem, a Luta, texto de 2002 que acaba de ganhar nova edição pela Três Estrelas (Grupo Folha), o professor e ensaísta Roberto Ventura escreveu que Euclides seguia “as teorias racistas e evolucionistas de sua época”.

Já na primeira noite desta Flip, o jornalista Dodô Azevedo postou em seu perfil numa rede social: “Ah, esse texto racistaço de Euclides da Cunha, homenageado da Flip 2019. Alguém vai falar sobre?”. No trecho a que se refere, há frases de Os Sertões como “a raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos”.


 

A psicóloga e ativista pela igualdade racial Cida Bento enfatiza a relevância do livro de Euclides, mas critica a existência de alguns trechos que “ensinam os lugares de inferioridade” na sociedade. A exemplo de grande parte dos intelectuais brasileiros da virada do século 19 para o 20, Euclides leu estudos do biólogo alemão Ernst Haeckel. Conforme lembra a antropóloga Lilia Schwarcz, autora de O Espetáculo das Raças, Haeckel escreveu que a civilização não poderia prosperar em um território como o brasileiro.

A escritora Marilene Felinto criticou o “jornalismo comprometido com o Exército” de Euclides e a “representação racista de mestiços e negros” em Os sertões. “É verdade que Euclides fez um mea culpa, mas, para mim, pouco importa sua redenção”, discursou Marilene

“Nossa leitura precisa ser crítica. Escolher um autor homenageado não significa endeusá-lo”, diz Fernanda Diamant, curadora da Flip. “Os problemas são evidentes em Os Sertões. Com intenção científica, Euclides comprou o pacote todo, o evolucionismo, o determinismo.”

Da Redação, com agências