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Celso Marconi: Bob Dylan, um filme e um show pela vida inteira 

O cineasta Martin Scorsese contou com 100 horas filmadas para montar o filme Rolling Thunder Revue – A Bob Dylan Story, que trouxe para o cinema o show de Bob Dylan, que vem sendo apresentado desde os anos 1975 nos Estados Unidos e no mundo inteiro.

Por Celso Marconi*

Bob Dylan

Nas cenas finais, temos a relação de todos os lugares onde Bob Dylan apresentou seu show, mostrando que nos primeiros anos era para públicos mais específicos e depois se derramou para grandes e grandes públicos pela dimensão cultural que o trabalho desse artista representou.

A respeito de Rolling Thunder Revue, existem críticos e mesmo produtores que não consideram que se trate de um documentário – mas na minha opinião é uma forma extraordinária de se criar um documentário. Não só porque mostra o próprio show e com quase todas as músicas que são apresentadas, mas por conseguir envolver muitos participantes na análise do significado social & cultural do espetáculo.

Bob Dylan é o cantor principal, mas tem participações fundamentais de intérpretes country e de vários outros formatos envolvendo a música que se fazia e se faz nos Estados Unidos, como Joan Baez, Roger McGuinn, Ramblin’ Jack Elliott, e também o escritor vanguardista Allen Ginsberg. Nas filmagens, Scorsese conseguiu mostrar as pessoas no começo da jornada, quando ainda tudo era um caminho para ser tomado, e faz entrevistas com eles, inclusive Dylan e Baez, já quase na velhice. Assim, o próprio Bob Dylan pode refletir sobre questões e falar sobre fatos anteriores. Nos anos 70 do século passado, a cultura musical dos Estados Unidos mostrava um significado que rompia com as limitações da própria sociedade capitalista imperante, e Bob Dylan e muitos outros artistas e intelectuais conseguiram levar isso para o mundo, inclusive pela força do capital que se aproveitava para se espalhar por todos os mercados.

Temos de levar em conta que o cineasta Martin Scorsese faz parte de uma leva fundamental na segunda metade no século 20, que conseguiu fugir à submissão total aos estúdios de Hollywood, e assim criar obras cinematográficas básicas, como Steven Spielberg, Quentin Tarantino, Francis Ford Coppola, Stanley Kubrick. A qualidade desse filme é uma consequência da grandeza desse show, mas também do excepcional trabalho de construção de Scorsese. Daí a significação dele se ligar a um período tão longo de filmagem para poder então montar o filme e distribuí-lo, hoje, como está através do sistema streaming da Netflix. A posição de Martin Scorsese nos Estados Unidos envolve uma estrela na Calçada da Fama em Hollywood e também a Palma de Ouro em Cannes pelo filme Taxi Driver em 1976.

Nos anos 70, quando o show Rolling Thunder Revue começou a ser apresentado, os Estados Unidos viviam as comemorações dos 200 anos de Independência do país. As próprias discussões colocadas no filme por Scorsese mostram que realmente estava acontecendo uma total reinvenção da Nação, como vários deles comentam. E o mundo inteiro também vivia essa dimensão histórica. A força da sua música era muito grande.


 

Aproveito e conto um fato que aconteceu comigo, repórter de cultura na época. A gravadora Odeon havia lançado três LPs de Joan Baez, e o divulgador Barnabé (me lembro) me entregou os três exemplares. Mas no mesmo dia viajei para o Rio (não me lembro em função de quê, foi um evento cultural, provavelmente de cinema). Então decidi e levei os três discos na mala para ouvir lá, mas como não tive tempo, eles ficaram em minhas mãos até a volta ao Recife. E só aqui então ouvi. Embevecido.

Rolling Thunder Revue, o filme, tem uma cena mais ou menos no começo que mostra como se trata de uma produção que supera o simples documentário. Termina uma música de Dylan e a câmera fixa numa jovem que olha fixa para o palco e depois a câmera a acompanha e a jovem começa a chorar intensamente. Essa cena me deixou claro que esse filme, assim como o show, poderá mexer com o profundo sentimento das pessoas.

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8