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Cinema pernambucano e Sertão: a Flip se rende a Árido Movie 

O filme Árido Movie será exibido no próximo sábado (13/7) na Flip, em Paraty (RJ). Ele entra na relação estabelecida de filmes que se ligam ao Sertão descrito por Euclides da Cunha, escritor homenageado nessa edição, a 17ª, da Festa Literária Internacional.

Por Celso Marconi*

Árido Movie

O cinema pernambucano tem atualmente uma posição destacada na produção brasileira. Em geral, quando alguém se refere a isso lembra o filme O Baile Perfumado, mas normalmente esquece os nomes dos filmes O Som ao Redor e Aquarius. O nome lembrado é o do diretor Kleber Mendonça Filho. Para mim, particularmente, a preferência seria para destacar nesse conjunto o filme Árido Movie – e não só por sua estrutura estética/plástica, mas pela concepção.

Divulgo a seguir uma crítica de minha autoria escrita em 27 de junho de 2009:

Um filme pessoal de Lírio Ferreira
Sei que o cineasta Lírio Ferreira é e sempre foi considerado um cineasta “independente”, no sentido de que faz um cinema sempre com características muito pessoais. O seu cinema nunca teve nada com “indústria”, nem nos longas nem muito menos quando fez curtas. Mas esse Árido Movie – que, para começar, assumiu o título criado pelo jornalista/cineasta Amin Stepple Hiluey para um tipo de cinema que se fez (se faz?) em Pernambuco – apresenta uma desenvoltura enquanto criação de estrutura que vai muito além das suas outras obras, principalmente as duas feitas quase que paralelamente, documentários. E quanto ao Baile Perfumado, seu primeiro longa, não foi feito com total autonomia, pois dividiu a direção com Paulo Caldas. Mas não é nem isso de ter dirigido em dupla, e, sim, a posição assumida, em sua subjetividade, nesse filme em referência, que me parece ter sido de alguém que resolveu só deixar aparecer aquilo que por ele fosse pensado (ou então assumido!).

Árido Movie se marca, em primeiro lugar, pela presença da maconha. E da droga como uma certa afirmação de maneira de viver. Os personagens urbanos vivem, todos eles, praticando o uso da droga como uma ação de total naturalidade. A maconha é o elemento essencial, que a natureza pede. Basta ver a sequência em que o trio perde tudo que tinha, mas quando Bob (Selton Mello) mostra que ainda conseguiu salvar, nas virilhas, um “cigarro”, a felicidade se instala novamente na nave espacial que é o carro. Lírio Ferreira não toma, em seu filme, uma posição de defesa ou condenação da droga. Ele simplesmente deixa que ela surja como uma presença de tal natureza como se fosse um ato fisiológico; você faz porque tem que fazer. Ele deixa claro que o que acontece com aquelas “personas”, porém, não lhe interessa que seja ou não algo de “toda a humanidade”; é aquela realidade do filme que está sendo vivenciada.

Árido Movie cria um mundo especial, não pretende ser o “nosso” mundo verdadeiro. A concepção que sentimos existir nesse filme é parecida com aquela que Magritte mostra ter, quando faz arte, e pintando um cachimbo, afirma: “Isso não é um cachimbo”. Lírio Ferreira poderia muito bem afirmar (não tenho certeza se não o fez!), quando algum repórter lhe perguntasse se aquilo ali representado era o Nordeste: “Isso não é o Nordeste”.

E a função da arte é essa mesma. Criar uma narrativa e, no caso do cinema, uma encenação dramática onde o espectador possa se reconhecer. Mesmo que considere que aquela realidade não é a que ele esteja vivendo. Árido Movie, nesse sentido (já o vi algumas vezes!), é um trabalho cinematográfico extraordinário. Isso porque consegue não ser didático, deixando a realidade num certo clima de fluidez, com uma ludicidade bem presente. Parece que estamos brincando de cinema, ou de realidade, o tempo todo. E nisso ele se aproxima muito de certos cineastas franceses ou italianos (como Zurlini ou até Truffaut).

O núcleo do seu filme é uma cidadezinha chamada Rocha (sem dúvida uma homenagem ao mítico “pai” do Cinema Novo), onde toda a ação se passa. E dali (sem querer lembrar o mestre do surrealismo!) tiramos todos os conceitos possíveis do que é o nosso Sertão. Um espectador não reflexivo certamente assistirá Árido Movie como um filme de ação, até bastante divertido, com mocinho (Jonas, o homem do clima), mocinha (a pesquisadora), bandidos e não bandidos, amigos e não amigos, tudo muito misturado. Mas para o espectador reflexivo, que vá colocando cada personagem como um dado, ou uma “pedra no quebra-cabeça”, a figuração criada por Lírio Ferreira é riquíssima.

E você pode chegar a uma análise do nosso Sertão de uma maneira bem radical e explícita. Isto é, em pleno 2006, quando temos todo esse mundo urbano em São Paulo e mesmo em Boa Viagem/Recife, o Sertão (Rocha = Petrolina / Juazeiro / Cabrobó…) continua sendo uma terra onde o “coronel” continua mandando, deflorando mocinhas, tendo filhos e filhas não legítimos, mandando na política, até na água que o Velho entrega como sagrada. Isto é, os poderosos mandam no corpo e na alma das pessoas. A dona de casa (Dona Carmo, Maria de Jesus Bacarelli, sempre grande intérprete) é a mesma mulher de princípios, que segue o marido como fiel e submissa, mas obrigando os filhos (e os não filhos) a cumprirem as sinas erigidas pelas famílias.

E Lírio Ferreira foi arrasador na sua demonstração do novo Sertão, que traz os velhos dilemas tradicionais, e junta com os modernos, sem se incomodar em utilizar os processos econômicos atuais, como a plantação de maconha. Uma visão que recende do filme, muito longe da perspectiva armorial, romantizada; e muito mais comprometida com algo euclidiano. O Sertão onde encontramos a seca (com a sua capacidade de se transformar em paisagens contrastadas, e belas); a água como elemento de dominação tanto pelo profano como pelo sagrado. E a violência bruta da própria psicologia feudal que ainda domina as cabeças das pessoas.

Acho necessário observar que embora Árido Movie seja um filme com um conteúdo não ligado às visões culturais oficiais, predominantes na sociedade brasileira, é uma obra que segue os padrões clássicos cinematográficos. Algo a ser observado é que seu roteiro foi obra de quatro pessoas: além de Lírio, temos Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira e Eduardo Nunes como autores e, segundo se informa como uma “curiosidade”, o roteiro teve seis versões. No resultado, Árido Movie é um filme pessoal, mas sem fugir de uma estruturação técnica primorosa. O roteiro foi escrito e reescrito, certamente de acordo com os desejos do realizador. E assim a sua narrativa segue as linhas clássicas, mas sem subordinações acadêmicas. Lírio mostra que é um cineasta – ou um artista criador – capaz de trabalhar com princípios de “indústria”, mas deixando sua marca, como aconteceu com vários cineastas norte-americanos das décadas de 40/50 do século 20.

Ainda: apesar do seu clima onírico e quase surrealista em algumas sequências, queremos destacar o trabalho de direção de atores, onde mesmo as pequenas pontas – como a feita pelo Jones Melo, cuja única ressalva que eu faria é que ele foi dublado (por quê?) –, mas todas as pontas, sem exceção, se mostram em plena grandeza de expressividade. É certo que Lírio Ferreira pôde contar com um elenco de primeira ordem, atores experientes como um Pereio (só para citar um!), mas ele conseguiu criar unidade no trabalho, e mesmo um clima de naturalidade. Não de naturalismo, não seria o caso, pois o filme não é naturalista.


 

* Celso Marconi, 89 anos, é crítico de cinema, referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8