O drama da repressão europeia ao resgate de imigrantes no mar

“Estamos à espera de quê? Que morram milhares de refugiados para mostrar aos outros que já não vale a pena atravessar o mar?”

Ana França – jornal Expresso, Portugal

Imigrantes

As pessoas que vê na imagem foram resgatadas em 2016 pela Marinha italiana. Cerca de 500 caíram ao mar depois de o barco que os trouxe da Líbia se virar devido ao excessivo número de gente a bordo. Hoje, grande parte das pessoas que atravessam o Mediterrâneo chegam em barcos de borracha: bem mais pequenos, bem mais frágeis.

Já houve uma dezena de navios de resgate no Mediterrâneo. Esta quinta-feira havia só um. Esta quinta-feira morreram 82 pessoas. “O Mediterrâneo vai ser um mar de sangue”.

“Há uma lacuna enorme nos meios que estão a fazer resgate e salvamento no centro do Mediterrâneo e a Europa não está a conseguir preencher essa falha. Por isso, enquanto se morrer no mar, não vejo porque não haja lugar para os navios das ONG”, diz ao Expresso Jay Berger, coordenador de logística do Aquarius, operado pelos Médicos Sem Fronteiras e pela SOS Méditerranée, entre agosto 2017 e março de 2018.

Quando a operação europeia de resgate Mare Nostrum chegou ao fim, em outubro de 2014 – de facto durou apenas um ano -, 150 mil pessoas tinham sido salvas pelos esforços conjuntos da UE. Nos discursos de quem se opunha à missão estavam sempre presentes os nove milhões de euros por mês que ela custava e isso acabou por ditar o seu fim. Foi substituída pelo Triton, uma missão não de salvamento mas de proteção de fronteiras. Em 2015, contra os protestos de Itália mas com a aprovação da maioria do bloco, foi criada a Operação Sophia, com o objetivo de combater e incapacitar os traficantes de pessoas na Líbia. Da sua frota, além de aviões, faziam parte 19 barcos, disponibilizados por vários países europeus, e por isso a Sophia, o nome de uma menina nascida num barco de resgate, acabou por se tornar uma missão de salvamento também. A pressão política que havia definhado o Mare Nostrum recai então sobre os esforços da Sophia, que neste momento não tem um único barco de patrulha e resgate. O almirante Enrico Credendino é um capitão sem velas.

Na semana que começou a 12 de abril de 2015 haveria de se registar o maior número de sempre de mortes no Mediterrâneo na história recente. Nesse dia 400 pessoas morreram depois de um barco com a capacidade muito para lá de esgotada virar com um momento de histeria coletiva dos ocupantes ao verem um barco de resgate. Quatro dias depois, 800 pessoas morrem quando o barco onde seguiam chocou com um cargueiro que se tinha deslocado da rota para os socorrer. Foram 1200 vidas perdidas apenas numa semana.

No fim de 2015, a sociedade civil tomou o leme do salvamento de pessoas no Mediterrâneo. Organizações não-governamentais de toda a Europa adquiriram navios e lançaram-nos nas águas onde tanta gente morre e ninguém vê. No pico da crise das migrações, entre 2015 e 2016, havia cerca de uma dezena de navios no Mediterrâneo. Esta quinta-feira, dia de 7 de julho de 2019, em que 82 pessoas morreram na costa da Tunísia a tentar escapar da Líbia, há um: o Alan Kurdi, operado pela instituição alemã Sea Eye.

“Mesmo quando eu andava no Mediterrâneo, e havia cerca de dez navios de resgate, era insuficiente, era impossível, a costa líbia é gigantesca, a probabilidade de aparecem barcos que não são vistos é enorme, recebíamos notícias de que dezenas de corpos tinham dado à costa num determinado local”, diz Miguel Duarte, antigo voluntário do navio Iuventa (e alvo de processo criminal por isso), embarcação arrestada em 2017 pelas autoridades italianas – como tantas antes e desde então. “Vamos receber notícias destas [82 pessoas que morreram esta quinta-feira] muito mais vezes. Entristece-me de uma maneira inexplicável, mas não me surpreende”, diz Miguel Duarte, português de 26 anos que se sente “imensamente frustrado” por estar em terra enquanto as pessoas morrem no mar: “Havia naqueles barcos tripulações muito boas no que faziam e agora estão confinadas aos seus próprios países, tentando garantir a sua liberdade pessoal em vez de irem para o mar ajudar”, acrescenta ainda.

Até há pouco tempo, também o Alan Kurdi (da Sea Eye) estava parado – teve problemas com a justiça. Teve este e tiveram praticamente todos os navios das ONG que ainda arriscam fazer salvamentos no Mediterrâneo. Desde o ano passado que as tripulações têm visto dificultado o seu desembarque nos portos onde habitualmente o faziam (Itália e Malta). E quando conseguem aportar, têm problemas com a autoridades locais. As bandeiras com que os navios navegavam começaram a ser um problema – os países deixaram de querer estar associados -, depois começaram as suspeitas de que haveria ligações a redes de tráfico humano.

Há cerca de um mês, a 9 de junho deste ano, a ONU lançou um alerta: já não há nenhum barco e, sem salvamento, “o Mediterrâneo vai ser um mar de sangue”, avisou na altura o Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR). A tragédia desta quinta-feira sucedeu-se a outra: um bombardeamento de forças leais a Khalifa Hifter, do exército rebelde líbio, sobre um centro de detenção de migrantes. Desde 2019, de acordo com o ACNUR e com a Organização Internacional das Migrações, 1.940 pessoas chegaram a Itália vindas do Norte de África e 350 morreram nesse percurso – uma taxa de mortalidade de 15%.

A espera que tantas vezes paralisa o desembarque das pessoas que os barcos resgatam é outro problema – apesar de menos falado. Jay Berger explica que o novelo de logística necessário para manter as pessoas mais ou menos confortáveis a bordo é difícil de desfiar – e vai ficando quase impossível à medida que o tempo passa. “O que acontece agora, com os navios a esperarem duas ou três semanas pela atribuição de um porto, é impensável. Tanto para os sobreviventes como para as tripulações. Não consigo perceber como se faz a logística de manter toda esta gente tanto tempo a bordo. O que acontece agora é completamente diferente daquilo que eu experimentei, há zero coordenação dos navios com as autoridades italianas e com as autoridades maltesas. Não vejo como isto é gerível. Como se deixa as pessoa ali?”, pergunta Miguel Duarte.

A solução, admite o português, “não passa pelo resgate marítimo perpétuo” e também não passa por “resgatar pessoas para as devolver a esses autênticos campos de concentração que são os centros de detenção que a Líbia tem”. O ideal seria que as pessoas não fossem obrigadas a sair dos seus países – “e, já agora, que parássemos com as guerras nesses países e de vender armas a esses países”. Só que o problema é complexo. “Podemos começar por estabelecer uma rede de resgate marítimo governamental e depois temos de abrir canais humanitários de pedido de asilo para que uma pessoa que seja aceite se possa colocar em segurança num avião – até porque um bilhete de avião é muito mais barato do que pagar aos traficantes.”

A Líbia é mesmo o maior problema, também segundo Jay Berger: “Sei que em determinados momentos não havia ONG no mar e muita gente morreu. A questão não é pensarmos que se as ONG estiverem no mar mais pessoas vão tentar atravessar. A questão é a Líbia. Enquanto acontecer o que está a acontecer na Líbia, as pessoas vão tentar atravessar. A questão que importa está na Líbia”. Miguel Duarte convoca uma imagem mais mórbida, ainda que irónica: “Esperamos o quê? Que morram vários milhares de pessoas para os que ainda não vieram pensarem que não vale a pena atravessar?”.

Manter navios “à força” ou triplicar o seu número anterior também não é solução. “O jogo de forças é desproporcional, podemos pôr muitos navios no mar mas a polícia italiana vai sempre arranjar maneira de travar isto.” A situação do próprio Miguel Duarte, os seus problemas com a justiça italiana, são prova disso, ou pelo menos é assim que o próprio lê a situação: “Nem sequer há uma acusação formal e o navio está há dois anos arrestado, não acredito que sejamos condenados, mas a resolução deste problema vai demorar muito, muito tempo”.

O Alan Kurdi está agora no mar, é o único atualmente. Provavelmente voltará a ter problemas quando atracar. Já lhe aconteceu antes. Tal como já aconteceu com o Sea Watch 3, com o Aquarius, o Iuventa, o Lifeline, o Open Arms ou com o Sea Eye. Depois de arrestados pela autoridades, uns voltam ao mar, outros não.

O Aquarius, por exemplo, foi um dos casos mais mediáticos por ter sido o primeiro navio a ver o seu desembarque negado, em junho de 2018, e esteve mais de uma semana à espera da atribuição de porto seguro. Hoje já não navega. O Phoenix, da Migrant Offshore aid Station (MAOS), desistiu do Mediterrâneo – foi para Myanmar ajudar os rohingyas.