Luiz Gonzaga Belluzzo: Sergio Moro, Albert Camus e os ratos

Rebolando na frigideira do The Intercept, o ex-juiz Sergio Moro ameaçou os brasileiros com um “pouco de cultura”. Recorreu ao poeta romano Horácio: Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus (A montanha pariu um rato). É modéstia afirmar que a montanha pariu “um” rato. Pariu uma ninhada. Disse e digo: as montanhas brasileiras têm se esmerado em parir ratazanas de vários tamanhos e de variegada pelugem.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo*

Sergio Moro

Veja, caro leitor, camundongos miúdos movimentam os bigodes e emitem guinchos nos esgotos das redes sociais. Incentivados por ratazanas graúdas e poderosas, transmitem a peste da intolerância, como os ratos de Albert Camus transmitiam a peste bubônica na cidade argelina de Orã. O ministro Moro foi carregado na voragem das pestilências dos intolerantes. Perdeu a noção da função jurisdicional, assim como o personagem Doutor Rieux descurou do devastador avanço da peste.

“Rieux telefonou ainda para outros médicos. Essa sindicância mostrou uns 20 casos semelhantes em alguns dias. Quase todos tinham sido fatais. Pediu então a Richard, secretário do Sindicato dos Médicos de Orã, o isolamento dos novos doentes.

Mas não posso fazer nada – respondeu Richard.

Essas providências são com a prefeitura. Além disso, quem lhe diz que há risco de contágio?

Ninguém, mas os sintomas são inquietantes.

A imprensa, tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada. É que os ratos morrem na rua e os homens, em casa. E os jornais só se ocupam da rua. Mas a prefeitura e a Câmara começavam a questionar-se. Enquanto cada médico não tinha tido conhecimento de mais de dois ou três casos, ninguém pensara em se mexer. Mas, em resumo, bastou que alguém pensasse em fazer a soma e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com a curiosa moléstia, que se tratava de uma verdadeira epidemia. Foi esse o momento que Castel, colega de Rieux, muito mais velho que ele, escolheu para ir visitá-lo.

Naturalmente – perguntou – sabe do que se trata, Rieux?

Estou esperando o resultado das análises.

Pois eu sei. E não preciso de análises. Fiz uma parte da minha carreira na China e vi alguns casos em Paris, há uns vinte anos. Simplesmente não se teve coragem de lhe dar um nome.

A opinião pública é sagrada: nada de pânico. Sobretudo, nada de pânico. E depois, como dizia um colega: ‘É impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do Ocidente’. Sim, todos sabiam, exceto os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu o que é.”

O caro leitor de CartaCapital sabe ainda melhor do que eu: a onda de truculências que atravessa o País como a peste de Orã pretende neutralizar o conflito de opiniões e extraditar as lutas sociais, políticas e econômicas, constitutivas da sociedade capitalista em qualquer de suas etapas, para além do território vigiado e protegido precariamente pela lei.

Desterrar o conflito social para fora da esfera pública e colocá-lo à margem da ordem jurídica certamente fará irromper na sociedade de massa pobre e empobrecida a verdadeira face da política: a oposição amigo/inimigo, uma oposição real irredutível, que não pode ser “superada”, mas apenas pacificada provisoriamente pelo veredicto da soberania popular, fonte do poder constitucional.

No ambiente de quase unanimidade midiática, a indignação sobe das entranhas para o peito, quase na garganta, uma espécie de regurgitamento moral sufocante que culmina na morte da inteligência. O depoimento de Glenn Greenwald no Congresso demonstrou cabalmente que é importante criminalizar a divulgação dos diálogos entre o juiz e os procuradores e esquecer o fato e as suas circunstâncias, sua história e suas raízes. A precária situação material e moral das massas facilita a penetração da cultura de negação. Suscita uma espécie de individualismo dos desesperados, o que acentua a incapacidade de descobrir os fatores da desgraça comum.

O mito primário da luta do Bem contra o Mal impede o cidadão de desvendar as forças impessoais, que, como a peste, levam à morte a autonomia dos indivíduos, ao colapso de sua capacidade de avaliar e julgar. O chamado público não consegue perceber as diferenças, tantas são as semelhanças, e isto transforma a política numa guerra de efeitos especiais. A indiferenciação das posições e das atitudes abre caminho para o avanço de projetos e ideias reacionárias, porque “todos são farinha do mesmo saco”.

* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor universitário