Delações de Léo Pinheiro foram recusadas até ele incriminar Lula

Durante o tempo em que o empreiteiro Léo Pinheiro se dispôs a colaborar com a Operação Lava Jato, os procuradores o trataram com desconfiança. O ex-presidente da construtora OAS só teve a delação premiada aceita após mudar diversas vezes sua versão, a ponto de incriminar o ex-presidente Lula no caso que levou o petista à prisão. É o que apontam mensagens privadas trocadas entre procuradores. As conversas, enviadas por uma fonte anônima, foram analisadas pela Folha de S.Paulo e pelo Intercept.

Léo Pinheiro

A delação de Léo Pinheiro foi parte central da denúncia da Lava Jato, que acusava a OAS de ter reformado o apartamento tríplex do Guarujá (SP) para Lula. Mas os procuradores, em troca de mensagens, admitiam que a acusação, além de frágil, não tinha sequer o respaldo do próprio empreiteiro.

“Sobre o Lula eles não queriam trazer nem o apt. Guaruja”, escreveu o promotor Sérgio Bruno Cabral Fernandes a outros integrantes da equipe que negociou com os advogados da OAS em agosto de 2016, numa discussão sobre a delação no aplicativo Telegram. “Diziam q não tinha crime.”

Léo Pinheiro só apresentou a versão que incriminou Lula em abril de 2017, mais de um ano depois do início das negociações com a Lava Jato. Na ocasião, quando foi interrogado pelo então juiz Sergio Moro no processo do tríplex, ele disse que a reforma do apartamento era parte dos acertos que fizera com o PT para garantir contratos da OAS com a Petrobras.

Os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept ajudam a entender por que as negociações da delação da empreiteira, até hoje não concluídas, foram tão acidentadas, As mensagens sugerem que o depoimento sobre Lula e o tríplex foi decisivo para que os procuradores voltassem a conversar com Pinheiro, meses depois de rejeitar sua primeira proposta de acordo.

Os advogados da OAS abriram negociações com a Lava Jato em fevereiro de 2016, quando havia investigações sobre as supostas relações de Lula com as empreiteiras. Os procuradores buscavam informações sobre o tríplex e as obras executadas pela OAS e pela Odebrecht num sítio que o líder petista frequentava em Atibaia (SP).

Léo Pinheiro já havia sido condenado por Moro por ter pagado propina a dirigentes da Petrobras e recorria em liberdade, mas temia ser preso se a apelação fosse rejeitada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, onde os processos de Curitiba são revistos.

O empreiteiro foi recebido com ceticismo desde o início. “A primeira notícia de versão do LP [Léo Pinheiro] sobre o sítio já é bem contrária ao que apuramos aqui”, disse um dos procuradores, Paulo Roberto Galvão, no início de março. “Estamos abertos a ouvir a proposta da empresa mas não nos comprometemos com nada.”

Em abril, após analisar relatos anexados à primeira proposta entregue pelos advogados da OAS, outro integrante da força-tarefa de Curitiba, Januário Paludo, disse aos colegas que achava o esforço inútil. “Tem que prender Leo Pinheiro. Eles falam pouco”, escreveu. “Me parece que não está valendo a pena.”

Uma pessoa que acompanhou as conversas da OAS com a Lava Jato na época disse à Folha que, inicialmente, Léo Pinheiro descreveu o tríplex como um presente que oferecera a Lula sem pedir nada em troca. Segundo essa pessoa, a insatisfação dos procuradores o levou a mudar sua versão pelo menos duas vezes até chegar àquela adotada em 2017.

Conforme as mensagens, os relatos apresentados pela empreiteira sofreram várias alterações até que os procuradores aceitassem assinar um termo de confidencialidade com os advogados, passo essencial para que as negociações avançassem. Mas os ajustes feitos pela OAS pareciam sempre insuficientes.

“Na última reunião dissemos que eles precisariam melhor[ar] consideravelmente os anexos”, disse o procurador Roberson Pozzobon aos colegas em julho, quando se preparavam para um novo encontro com os representantes da empresa. “Os anexos que a OAS entregou hoje são muito semelhantes Àqueles que a carol enviou antes aqui”, escreveu a procuradora Jerusa Viecili no Telegram após a reunião. “Só há alguns anexos novos.”

Embora apontassem várias omissões nos relatos entregues pela empreiteira, os procuradores achavam que conseguiriam mais informações quando pudessem entrevistar seus executivos – e por isso continuaram dando corda aos advogados. Mas havia muita especulação sobre a delação da OAS na imprensa e os vazamentos incomodavam os negociadores, que os atribuíam a uma estratégia dos advogados para despertar interesse pela proposta e torná-la irrecusável para o Ministério Público.

O mais rumoroso desses vazamentos teve efeito contrário aos interesses da empreiteira. Em agosto, reportagem da revista Veja apontou o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, como um dos citados pelos delatores e despertou fortes reações da Corte, obrigando a Lava Jato a recuar. Segundo Léo Pinheiro, a empreiteira tinha participado de uma reforma na casa de Toffoli em Brasília, mas os serviços tinham sido executados por outra construtora indicada pela OAS, e o ministro pagara a conta.

As mensagens obtidas pelo Intercept indicam que os advogados da empresa mencionaram o assunto aos procuradores, mas não tinham apresentado até então nenhum relato sobre Toffoli por escrito. “Ficou na promessa”, escreveu Sérgio Bruno aos colegas depois do vazamento. “Acho q não será nada consistente.”

Após o vazamento, os procuradores cogitaram a possibilidade de que o advogado de Léo Pinheiro, José Luis Oliveira Lima, tivesse incluído entre os documentos entregues à força-tarefa um capítulo sobre o tema sem avisar, mas a suspeita não se confirmou. Outro advogado na linha de frente da defesa do OAS, Bruno Brasil, também era alvo de suspeitas. Ele fora citado em investigações sobre corrupção no Superior Tribunal de Justiça, e os procuradores desconfiavam que pudesse estar envolvido em crimes cometidos pelos executivos da OAS.

Com os procuradores sentindo-se enganados pelos advogados, e para evitar um atrito que poderia levar o STF a tomar medidas para frear o avanço das investigações, a Procuradoria-Geral da República decidiu então suspender as negociações com a OAS. Alguns se opuseram à decisão. Chefe da força-tarefa de Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol temia perder informações que a empreiteira prometia entregar sobre suas relações com políticos tucanos em São Paulo e Minas Gerais. “Até fecharmos algo bom do PSDB, não dá pra descartar”, escreveu.

Outros preferiam não correr os riscos de uma ação do Supremo contra a operação. “Os anexos da OAS não valem isso”, escreveu a procuradora Anna Carolina Resende Maia Garcia no Telegram. “Na minha visao, são muito ruins, o adv Eh mal caráter e Léo Pinheiro Eh o empreiteiro com mais prova contra si.”

Um novo vazamento abortou de vez o processo. Dias após a suspensão das negociações, a revista Veja divulgou o conteúdo de sete dos anexos que a empresa havia apresentado aos procuradores e afirmou que a empresa revelara a existência de uma conta clandestina para fazer pagamentos a Lula. As mensagens obtidas pelo Intercept mostram que os procuradores ficaram furiosos com o vazamento, especialmente porque não havia nos relatos da empresa nenhuma menção à conta. "Nunca falaram de conta", afirmou Sérgio Bruno aos colegas.

Uma semana depois, Moro mandou prender Léo Pinheiro por causa de um dos inquéritos que envolviam o ex-presidente da OAS e as negociações de sua delação ficaram congeladas por meses. A Procuradoria-Geral da República e a força-tarefa de Curitiba aceitaram retomá-las em março de 2017, quando o processo aberto para examinar o caso do tríplex estava se aproximando do fim e Léo Pinheiro se preparava para ser interrogado por Moro.

Em seu depoimento, em 24 de abril, o empreiteiro afirmou que tinha uma conta informal para administrar acertos com o PT, introduzindo pela primeira vez o tema em sua versão. Além disso, acusou Lula de orientá-lo a destruir provas de sua relação com o partido após o início da Lava Jato. O depoimento foi decisivo para o desfecho do caso do tríplex, porque permitiu a Moro conectar o apartamento à corrupção na Petrobras, justificando assim a condenação de Lula.

Mensagens trocadas por Deltan com seus colegas e Moro nessa época, publicadas pelo Intercept no início do mês, revelam que a força-tarefa se preocupava com a fragilidade dos elementos que tinha para estabelecer essa conexão, essencial para que o caso ficasse em Curitiba e fosse julgado por Moro. Os procuradores voltaram a conversar com Léo Pinheiro sobre sua delação premiada semanas depois do depoimento, em maio.

No mês seguinte, o Ministério Público pediu a Moro que reduzisse pela metade a pena do empreiteiro no caso do tríplex, como prêmio pela colaboração no processo. Em julho, o juiz o condenou a 10 anos e 8 meses de prisão, mas o autorizou a sair quando completasse 2 anos e 6 meses atrás das grades.

Pinheiro continuava sendo alvo de desconfianças dos procuradores que negociavam sua delação. "Leo parece que está escondendo fatos também", escreveu a procuradora Jerusa Viecili aos colegas em agosto. Ela achava estranho o fato de que ninguém nunca falara em destruição de provas antes do empreiteiro.

Para Deltan, havia também o risco de um acordo com Léo Pinheiro, com redução de pena e outros benefícios em troca de sua cooperação, ser interpretado como concessão indevida. "Não pode parecer um prêmio pela condenação do Lula", disse o chefe da força-tarefa aos colegas em julho.

As negociações se arrastaram por meses até que um acordo fosse fechado, no fim de 2018. Ele foi assinado pelos procuradores e pelo colaborador, mas até hoje a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, não o encaminhou ao STF para que seja homologado. Pinheiro continua preso em Curitiba.

Esta é a segunda de uma série de reportagens que a Folha planeja produzir com base nas mensagens trocadas pelos procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato nos últimos anos e obtidas pelo site The Intercept Brasil. O site permitiu que a Folha tivesse acesso ao acervo, que diz ter recebido de uma fonte anônima há semanas. A Polícia Federal abriu inquéritos para investigar suspeitas de ataques de hackers a telefones de procuradores e do ministro Sergio Moro (Justiça).

Nos últimos dias, repórteres do jornal e do site trabalharam lado a lado, pesquisando as mensagens e analisando seu conteúdo. Como o material é muito vasto, os jornalistas têm dedicado bastante tempo para analisar os diálogos, examinar o contexto das discussões nos vários grupos de mensagens e checar as informações encontradas para verificar a consistência do material obtido pelo Intercept.

O pacote reúne mensagens privadas trocadas pelos procuradores em vários grupos no aplicativo Telegram desde 2014, incluindo diálogos com Moro, que foi o juiz responsável pelos processos da Lava Jato em Curitiba até 2018. Além das mensagens, o acervo inclui áudios, vídeos, fotos e documentos compartilhados no aplicativo. Ao examinar o material, a reportagem da Folha não detectou nenhum indício de que ele possa ter sido adulterado.