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Santiago, 1973: quando a Itália se virou contra Pinochet

Nanni Moretti aparece pouco em Santiago, Itália, seu segundo documentário de longa-metragem, lançado ontem (20) no país. Durante o filme, ouvimos irregularmente sua voz fazendo perguntas, como que num recolhimento estratégico, a contrapelo do protagonismo em suas ficções (Caro Diário; O Quarto do Filho).

Por Amir Labaki, no Valor Econômico

Santiago Itália

Esta quase invisibilidade no documentário cumpre dupla função dramática. Por um lado, reserva o primeiro plano para suas duas dezenas de entrevistados, em sua maioria chilenos, alguns poucos italianos, todos impactados diretamente pelo golpe de Estado de setembro de 1973 que vitimou o presidente Salvador Allende (1908-1973) e instalou a sanguinária ditadura militar do general Augusto Pinochet (1915-2006).

Entre os primeiros depoentes, encontram-se cineastas que não apenas testemunharam e documentaram o governo socialmente engajado de Allende (1970-1973) mas que também realizaram alguns dos principais documentários sobre a cruel repressão no Chile durante o regime pinochetista. Moretti se eclipsa frente a Patricio Guzmán (A Batalha do Chile, 1975-79), Miguel Líttin (Ata Geral do Chile, 1986) e Carmen Castillo (Calle Santa Fe, 2007), para que ouçamos suas vozes e vejamos algumas das imagens por eles captadas do democrático período Allende e da longa noite militar que o sucedeu.

Pouco mais da primeira metade de Santiago, Itália concentra-se em reconstituir a história chilena a partir de memórias pessoais complementadas por materiais de arquivo. Sucedem-se sobretudo intelectuais, líderes sindicais, artistas e colaboradores da administração Allende. Em comum, o reconhecimento dos avanços da política de inclusão social então implementada e o choque diante da inédita truculência da ruptura institucional provocada pelo golpe de Pinochet.

Por outro lado, Moretti surge diante da câmera, passada cerca de uma hora de projeção, para uma pontual aparição, confrontando um dos generais do regime autoritário. “Eu não sou imparcial”, frisa por duas vezes o cineasta diante do depoente militar que reclama haver esperado um entrevistador neutro.

A cena é um breve editorial, político por certo, mas sobretudo estético. Numa frase, Moretti distingue documentário e jornalismo. A busca da maior objetividade e neutralidade profissional possíveis, por mais utópicas que sejam, é das regras éticas da atividade jornalística. No documentário, como no cinema e na arte em geral, o compromisso é de outra ordem: o da expressão livre e plena da subjetividade. Um filme não ficcional é uma versão pessoal da realidade, explicita Moretti.

Apenas no terço final do documentário esclarece-se a conexão italiana. O governo da Itália foi um dos únicos a recusar o pronto reconhecimento diplomático à ditadura militar implementada por Pinochet. Assim, durante os primeiros meses da bárbara caça, prisão, tortura e aniquilação de colaboradores e simpatizantes do governo Allende, a embaixada italiana funcionou como um dos raros refúgios na capital chilena.

Jovens diplomatas servindo em Santiago na época, como Piero De Masi e Roberto Toscano, recordam as soluções improvisadas para acolher centenas de pessoas no espaço exíguo de uma representação diplomática. Vários dos anônimos a que fomos apresentados na primeira parte do filme revelam então outra experiência partilhada: a de chilenos salvos da repressão pelo asilo na Itália.


Nanni Moretti observa Santiago, sob a Cordilheira dos Andes, em cena de seu novo filme
 

É quando se fecha o círculo entre passado e presente. Moretti retorna ao Chile de ontem para também falar da Itália de hoje. “Santiago, Itália” recupera um desconhecido episódio de solidariedade italiana com perseguidos e indefesos para implicitamente contrapô-lo à onda xenofóbica que se alçou no país frente a atual crise dos imigrantes africanos e árabes.

Em 1973, a Itália dava uma aula de humanismo, internacionalismo e antiautoritarismo ao abrir as portas para os exilados e rechaçar o despotismo de Pinochet. Em 2019, ei-la tendo por homem-forte o reacionário Matteo Salvini, atual ministro do Interior e vice primeiro-ministro, ultranacionalista, eurocético e radical opositor do abrigo a refugiados. Bem sabemos, não está sozinho.

Simples e direto, “Santiago, Itália” parece um modesto documentário sobre uma nota de página da história diplomática internacional. A “bela história italiana” de Moretti é na verdade um grito de alerta.