Ditadura pagou colaborador do nazismo para vigiar brasileiros em Paris

No começo da ditadura militar (1964-1985), o francês Georges Albertini recebia US$ 3.600 trimestrais do regime. Ex-colaborador do nazismo durante a 2ª Guerra Mundial, o lacaio tinha mais uma missão torpe na carreira: espionar exilados brasileiros que se foram para Paris após o Golpe de 64, como o jornalista Samuel Wainer e o bispo dom Hélder Câmara.

Itamaraty

Os recibos de pagamento feitos pelo Itamaraty a Albertini, um extremado anticomunista, constam do livro Liberdade Vigiada, do historiador brasiliense Paulo César Gomes. A obra é resultado de sua pesquisa de doutorado e aborda as relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês. O pesquisador participou da Comissão Nacional da Verdade, que apurou os crimes da ditadura brasileira.

“Fiquei muito surpreso com a descoberta da colaboração de Georges Albertini com o governo brasileiro nos primeiros anos da ditadura”, contou Gomes ao UOL. “Inicialmente, comecei a encontrar nos arquivos do Itamaraty diversos recibos de pagamento em nome dele devidamente assinados. Foi preciso todo um esforço de investigação para conseguir entender quem era Albertini.”

Segundo o historiador, o trabalho de Albertini tinha dois focos principais. “Ele atuava para vigiar os brasileiros que passaram a viver em Paris logo após o golpe. Há diversos informes em seu acervo pessoal que comprovam seu trabalho de monitoramento de cidadãos brasileiros. Há também correspondências com autoridades brasileiras, até mesmo com o presidente Castelo Branco”, diz.

Na obra, Gomes conta que o SNI (Serviço Nacional de Informações), vinculado ao Itamaraty, aprovou a contratação do francês para elaborar relatórios mensais sobre atividades comunistas, em especial sobre o Brasil, informando à embaixada brasileira em Paris sobre informações de brasileiros na França. Ele ainda atuava como uma espécie de assessor de imprensa informal, na “produção de informações de caráter fortemente anticomunista elogiosas ao governo brasileiro”, diz Gomes.

“Tais informações eram publicadas tanto no jornal que possuía, o Est & Ouest [Oriente e Ocidente, em tradução livre], como em outras publicações francesas nas quais ele tinha contatos. Cabe lembrar que muitas reportagens sobre o Brasil produzidas sob seu comando eram publicadas mediante pagamento”, destaca o pesquisador.

“O trânsito bastante livre de Albertini em órgãos do serviço secreto e da polícia franceses é bastante surpreendente e eram essas as origens das fontes que usava para colaborar com as autoridades brasileiras”, explica o autor. Além dos pagamentos trimestrais, Albertini recebia ainda do governo militar passagens aéreas para vir ao Brasil regularmente. Aqui, chegou a se reunir com Castelo Branco.

Antes de ser contratado para trabalhar para a ditadura brasileira na França, Albertini já tinha passado pelo Brasil. Em 1961, deu entrevista à rádio Globo, palestrou para estudantes na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, e na Universidade de Uberaba, em Minas Gerais. Segundo Gomes, o francês passava pelo Brasil pelo menos duas vezes por ano.

Albertini chegou a escrever em seu jornal que o governo de João Goulart “mereceu ser derrubado” por ter “conduzido o país à ruína econômica, financeira e monetária, sem, contudo, fazer avançar um reformismo construtivo, demonstrando uma total inaptidão para dominar os problemas do país”. O colaborador se encontrava bastante com o então embaixador brasileiro em Paris, Mendes Viana.

Segundo a obra, o diplomata buscava informações sobre as atividades de Samuel Wainer. Ex-diretor do jornal Última Hora, Wainer era responsabilizado pelos ataques da imprensa francesa ao regime brasileiro. O embaixador quis ainda confirmar se o pintor Di Cavalcanti teria doado mil dólares para o Partido Comunista francês.

Ao consultar tanto documentos do Ministério das Relações Exteriores quanto do governo francês, o pesquisador constatou que o governo brasileiro pediu a Albertini que vigiasse dom Hélder Câmara em suas viagens a Paris. O francês, em um de seus relatórios, acusou o bispo de passar informações secretas de uma das reuniões do Vaticano para os jornais franceses.

Serviços muito caros

A prestação de serviços de Albertini é dispensada em 1967, quando Costa e Silva assume a Presidência e Emílio Garrastazu Médici passa a comandar o SNI. O argumento para o fim da parceria foi que o preço dos serviços de Albertini era muito alto para o orçamento do órgão. O livro relata que Castelo Branco ainda tentou ajudar o francês, mas morreu antes de encontrá-lo no Brasil, onde poderia fazer a ponte com as autoridades no comando.

Em 1968, Albertini voltou ao Brasil e foi convidado para palestrar na Fiesp pelo presidente da instituição na época, Theobaldo de Nigris. Mesmo sem ser remunerado, o francês ainda manteve sua análise sobre a situação brasileira – mas, desta vez, não a serviço dos militares. Ele chegou a afirmar em suas publicações que o AI-5 era controlável e estável.

Conhecido por sua produção anticomunista após a Segunda Guerra, Albertini é uma figura inusitada: ainda jovem, entrou para o Partido Socialista francês. Em 1934, entrou para o Comitê de Vigilância de Intelectuais Antifascistas, grupo que visava combater a ascensão do fascismo na Europa. Mas, durante o período da ocupação nazista da França, Albertini aliou-se ao chamado governo de Vichy, usado pelos alemães para administrar a área invadida durante a guerra.

Colaboracionista, o francês “desprezava a democracia parlamentar”, nutria grande admiração pelo fascismo alemão e defendia Hitler, diz o autor no livro. “Embora não se considerasse antissemita, defendia que judeus não eram capazes de serem assimilados pela sociedade francesa e que, por essa razão, deviam construir uma nação fora da França”, afirma Gomes na obra.

Em 1944, foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados por sua colaboração com os nazistas, mas recebeu o perdão presidencial em 1948. A partir daí, iniciou sua cruzada anticomunista e antissoviética. De acordo com a pesquisa de Gomes, entre 1940 e 1981, Albertini aconselhou todas as lideranças francesas, coordenou campanhas eleitorais e escreveu discursos políticos.

Lutar contra o comunismo na Europa não lhe era suficiente, e o francês voltou sua atenção para a América. “A maior evidência de que Albertini também mantinha contato com outros governos da América Latina é o fato de que o jornal Est & Ouest tinha uma versão em espanhol. O objetivo dessa publicação, segundo o próprio Albertini, não era ser acessada diretamente pela população, mas servir de base para órgãos difusores de informações, ligados à imprensa, empresas privadas, organizações sindicais e até mesmo religiosas”, explica o autor.

O Itamaraty como braço da ditadura

Na obra, o autor afirma que o golpe de 1964 não prejudicou as relações entre Brasil e França. “Ao contrário, a chegada de um novo grupo ao poder foi vista pelas autoridades francesas como um sinal de maior estabilidade na política brasileira”, diz Gomes no livro. “A colaboração do governo francês com a ditadura militar brasileira foi bastante diferente do que ocorreu no caso dos EUA, mesmo porque o Brasil não estava na zona de influência francesa e, portanto, não era tão importante para o país.”

“Logo depois do golpe de 1964, chegou a haver certa desconfiança por parte do governo francês acerca de que atitude adotar em relação ao que estava ocorrendo no Brasil. Mesmo porque, enquanto a imprensa francesa de modo geral sempre foi muito crítica à deposição inconstitucional do presidente João Goulart, os diplomatas franceses, no âmbito das comunicações secretas, avaliavam com simpatia a chegada dos militares ao poder”, diz o pesquisador. “Seja como for, ao contrário dos EUA, que foi o primeiro país a reconhecer o novo regime, a França tergiversou e só se posicionou oficialmente após as eleições indiretas que levaram Castelo Branco à Presidência.”

Em 1964, o presidente francês, general Charles de Gaulle, veio ao Brasil, “onde foi recebido com grande efusividade por parte das autoridades e da população por todas as cidades pelas quais passou”, relata o livro. “Internacionalmente, essa viagem acabou tendo um significado muito positivo para a imagem do Brasil. Podemos, no entanto, considerar que a opção do governo francês em não interferir nas questões internas brasileiras, mesmo quando denúncias de tortura e demais violações aos direitos humanos pipocavam na França, foi um tipo de colaboração direta, já que havia um esforço para que os interesses econômico-financeiros, sobretudo relativos à venda de armamentos, não fossem afetados.”

Com base nos documentos consultados nos dois países e nos depoimentos concedidos por diplomatas à Comissão Nacional da Verdade, Gomes destaca o papel do Ministério de Relações Exteriores brasileiro “como o braço da ditadura no exterior”. Como? “Isso não apenas pelas atividades de vigilância de brasileiros considerados subversivos e, portanto, perigosos para a segurança nacional, como pelo esforço de proteger a imagem internacional do Brasil, divulgando informações elogiosas ao país e tentando impedir a circulação de críticas ao governo brasileiro”, argumenta.

O autor lembra que, apesar de ter tido acesso aos documentos brasileiros por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação) e às comunicações diplomáticas francesas, há muitos documentos de órgãos de segurança e informações militares que até hoje estão inacessíveis. Segundo ele, os adidos militares nas embaixadas e consulados respondiam diretamente às Forças Armadas, e não ao SNI, do Itamaraty.

Da Redação, com informações do UOL