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As editoras vão violentar a obra de Monteiro Lobato? 

A entrada em domínio público da obra de Monteiro Lobato (1882-1948), praxe ao se completarem 70 anos da morte de um escritor, traz de volta a tesoura da censura para traçar o figurino politicamente correto. Estigmatizadas como racistas, algumas passagens de livros infantis do autor de A Menina do Narizinho Arrebitado (1920) serão reescritas ou até apagadas por editoras e revistas infantis – conforme já anunciaram publicamente.

Monteiro Lobato

Em primeiro lugar, registre-se que o estado de domínio público de uma obra não autoriza sua mutilação. Significa apenas que os publicadores já não pagarão direitos autorais aos herdeiros do autor. A integridade dos livros, patrimônio moral imprescritível, deve ser mantida por quem desejar publicá-los – sob pena de cometimento do crime nefando da censura, seja pelo corte, seja pela reescrita do texto.

Já se usa nas edições para biblioteca das escolas públicas (Lobato foi adotado em São Paulo já em 1920) a intervenção da “nota explicativa”, pela qual trechos considerados inapropriados aos alunos são alvejados com um asterisco para assinalar atividades hoje fora da lei, como o abate de animais silvestres (proibido em 1967), presentes em obras como A Caçada da Onça (1924), ou observações literárias feito “macaca de carvão” ou “carne preta”, sobre a personagem Tia Nastácia – um dos seres humanos mais admiráveis da obra de Lobato.

Como muitos luminares de seu tempo, o criador do polêmico Jeca-Tatu se deixou levar pelas ideias eugenistas que no primeiro quartel do século 20 contaminaram brasileiros de fina inteligência e grosso preconceito, a exemplo de Afrânio Peixoto, Artur Neiva, Juliano Moreira, Fernando Azevedo, Alfredo Ellis, Roquete Pinto, Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Circulava nos salões da aristocracia intelectual a crença de que a mestiçagem da população comprometia o progresso do Brasil.

O ensaio Raça e Assimilação, de Oliveira Viana, um racista convicto, defendia a impossibilidade da miscigenação e pregava a progressiva arianização do povo brasileiro. Lúcia Miguel Pereira, no ensaio Prosa de Ficção – De 1870 a 1920, salientou que era um era esporte nacional “uns exaltarem os alemães, outros, os franceses, alguns os ingleses e americanos do Norte, mas todos concordavam em que os brasileiros e seus avós, portugueses ou negros, pouco valiam.”

Coube a Gilberto Freire, com Casa-grande e senzala (1933), desvendar a opulência do caldeamento étnico e sua riqueza social na forja da sociedade nacional – inclusive como poderoso instrumento de combate ao racismo. “Mestiço é que é bom”, diria depois seu discípulo Darci Ribeiro.

Mas daí banir Lobato da estante e crucificá-lo por racismo, e por isso censurar sua obra, vai uma grande diferença. A dualidade, de discriminação na vida e igualdade na ficção, sobressai no conto Negrinha (1920), em que o escritor destila, com horror literário, seu nojo à escravidão, ao bordar a triste história de uma órfã de sete anos, ainda nascida na senzala, tomada para criação mas torturada, à moda do pelourinho, por uma “virtuosa dama” saudosa da escravatura, que mantinha sua senzala particular.

Lobato também compara a boneca Emília a uma “bruxa”, e, entre elogios rasgados às habilidades da “negra da estimação” Tia Nastácia (“a melhor quituteira deste e de todos os mundos”), equiparara-a à “velha” Dona Benta ao chamá-las de “respeitáveis matronas.”

A grandiosa biografia de Lobato, precursor da prosa modernista, também editor fecundo, militante do nacionalismo, defensor da exploração do petróleo, não pode ser maculada, desde a infância de seus leitores, por trechos esparsos que não comprometem a excelência de sua obra.