Representante de Cuba no Brasil enfrenta questionário d'O Globo

Em entrevista ao jornal, o encarregado de negócios Rolando González diz que aperto nas sanções americanas provoca falta de remédios na ilha.

Rolando González Cuba

Ele está à frente da embaixada de Cuba em Brasília desde o fim de 2016, quando Havana, em protesto contra o golpe do impeachment da presidente Dilma Rousseff, chamou de volta a embaixadora Marielena Ruiz Capote.

González afirmou que, ao contrário do que dizem autoridades americanas e brasileiras, não há militares entre os cerca de 20 mil cubanos que residem na Venezuela. Questionado sobre países europeus e latino-americanos que têm procurado o governo cubano para discutir uma solução para o fim do impasse que opõe o governo de Nicolás Maduro e os golpistas liderados por Juan Guaidó, respondeu:

— Conversamos sobre Venezuela e sobre outros temas com o mundo inteiro mas, sob pressão, não faremos um único milímetro de concessão. Nós somos amigos do povo venezuelano, como somos amigos de muitos outros países.

Ele respodeu a todas às pergunta do O Globo, geralmente em tom provocativo, com contundência. 

Lei a íntegra da entrevista:

O que significou, para seu país, a vitória do presidente Donald Trump nas eleições americanas?

O governo Trump fez retroceder as relações que alcançamos com seu antecessor, Barack Obama. Ao mesmo tempo, intensificou sua política de sanções unilaterais, com um marcado caráter extraterritorial. Trump recrudesceu a política de restrição e perseguição a transferências bancárias e transações financeiras de modo geral com Cuba, impedindo essas operações e criando obstáculos para as compras e vendas cubanas. Seu objetivo óbvio e declarado é asfixiar a economia cubana.

O bloqueio existe há 60 anos, mas agora Trump o elevou à máxima pressão, ao permitir processos judiciais contra empresas estrangeiras ou cubanas instaladas em propriedades confiscadas pelo governo de Cuba após a revolução de 1959. Numerosas empresas da Europa, do Canadá, do México, entre outras, foram indenizadas pela expropriação. Porém, o governo americano não autorizou a indenização para empresas daquele país. E agora apertam Cuba de todas as formas, impedindo que empresas estrangeiras invistam no nosso país. Como se não bastasse, foram suspensas as viagens aéreas e de navios a nosso país [em decisão anunciada na semana passada, Trump proibiu que aviões particulares e navios de cruzeiro viajem a Cuba a partir dos Estados Unidos].

Entre as razões alegadas por Washington está o apoio incondicional de Cuba ao regime do venezuelano Nicolás Maduro.

O pretexto utilizado para justificar toda essa escalada é cercado de calúnias e falsas informações. Uma delas é a presença militar cubana na Venezuela, que não é verdade. Os EUA ameaçam e pressionam para que Cuba suspenda sua cooperação em matéria de saúde, educação, esportes, agricultura, entre outras áreas. Temos cerca de 20 mil colaboradores na Venezuela, em sua imensa maioria médicos, como os que estiveram no Brasil.

Não há militares entre essas 20 mil pessoas na Venezuela, como afirmam os governos dos Estados Unidos e do Brasil?

Nem um só militar. 

Não existe militar cubano na Venezuela?

Temos na embaixada, por exemplo, assim como o Brasil e outros países. Não é como dizem. O que existe é uma campanha de pressão para afetar essa cooperação, que se dá de maneira soberana. Cuba está sendo afetada severamente pelo bloqueio, sobretudo na saúde pública. A disponibilidade de medicamentos e insumos para sua fabricação foi duramente afetada. Faltam, hoje, cerca de 80 medicamentos de um quadro básico de 600 remédios no Ministério da Saúde Pública. São remédios para enfermidades crônicas, não transmissíveis, como a hipertensão para os idosos e os tratamentos para o câncer. Esse bloqueio unilateral e genocida é o mais longo já aplicado em toda a história da humanidade. São 60 anos de bloqueio.

As autoridades cubanas estão conversando com representantes dos países que tentam mediar um acordo entre Maduro e Juan Guaidó? Em que nível está a conversa?

Cuba está conversando com todo mundo. Temos um prestígio alto na busca de soluções pacíficas e prova disso foi o uso de nosso território para a negociação de um acordo entre o governo colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

E no caso específico da Venezuela?

Conversamos sobre Venezuela e sobre outros temas com o mundo inteiro mas, sob pressão, não faremos um único milímetro de concessão. Nós somos amigos do povo venezuelano, como somos amigos de muitos outros países. Temos uma cooperação e uma relação estreita com a Venezuela. A ideia de que Maduro se mantém no poder por causa de Cuba, ou Rússia, é uma falsidade, uma calúnia, um absurdo. O governo de Maduro se mantém pelo respaldo que tem de seu povo.

Qual seria o caminho para a solução da crise na Venezuela?

A Venezuela tem tido muita ingerência externa sobre o cenário político e se polarizou. Tem recebido sanções muito fortes, que provocaram uma crise econômica dura. Mas a solução tem que ser encontrada pelos próprios venezuelanos. E não pode ser da responsabilidade de Cuba ou de nenhum país. O caminho é o do diálogo, da cooperação e da negociação. Não pode existir outra via. O uso de ameaças e sanções é como pôr gasolina no fogo.

É verdade que Maduro pensou em pegar um avião e ir para Cuba, no dia em que Guaidó tentou liderar um levante militar?

É uma enorme ilusão, imaginação e muita especulação.

A saída do Brasil dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos contribuiu para piorar a crise em Cuba?

Esse dinheiro ajudava a sustentar o sistema de saúde. Porém, por sua generosidade, sua entrega, sua disposição para trabalhar onde não trabalhavam outros médicos, por sua solidariedade com os pacientes, eram mais do que médicos, eram verdadeiros patriotas cubanos, revolucionários e grandes profissionais. Claro que a economia cubana foi afetada, mas o maior impacto foi sobre os milhões de brasileiros que deixaram de ser atendidos.

As relações entre Brasil e Cuba já não andavam bem, desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, e agora estão piores, por causa da crise na Venezuela. Como resolver essa questão?

As diferenças políticas e ideológicas não devem constituir obstáculos e impedimentos para o desenvolvimento de uma relação em benefício do povo, e isso se aplica também ao Brasil. Pelo menos 189 países votaram contra o bloqueio a Cuba nas Nações Unidas e nem todos esses países coincidem ideologicamente e politicamente com Cuba. Temos médicos em mais de 68 países e nem todos são socialistas, nem comunistas. Muitos são governos de direita.

Havana chamou de volta a embaixadora de Cuba no Brasil após a saída de Dilma Rousseff. Existe perspectiva de ela voltar?

Ainda estamos avaliando essa possibilidade. Nossas relações têm tido alguns inconvenientes, mas desejamos que evoluam de maneira positiva, respeitando nossas diferenças, sem ingerência em assuntos internos e respeitando todos os princípios das Nações Unidas e o direito internacional. Nesse caminho, estamos muito interessados em manter as relações comerciais com o Brasil, que é um grande mercado. Esperamos que as diferenças não interrompam ou impeçam o normal desempenho de uma relação bilateral entre povos amigos com uma identidade comum e origem comum.

O governo do presidente Jair Bolsonaro critica o financiamento de obras em Cuba, como o porto de Mariel, pelo BNDES. Afirma que houve corrupção.

Nosso país não cedeu nenhum átimo de corrupção nos acordos que tiveram relação com o porto de Mariel. Cuba esteve pagando o acordo enquanto pôde. Quando não pôde, pelas inclemências do bloqueio econômico e pelo impacto de furacões que deixaram enormes perdas no país, com um efeito descomunal às instituições turísticas e estatais, Cuba interrompeu o pagamento. Voltaremos a pagar assim que o país tenha condições de fazer isso.