Sem categoria

Paulo Verlaine: A recém-nascida e o pequeno burguês 

Há 50 anos, em 13 de junho de 1969, Paulo Verlaine era preso pela ditadura militar. “Só pensava em tortura, no sofrimento da minha família e nos papéis partidários clandestinos que estavam lá em casa. Não eram muitos, mas o suficiente para causar muitos aborrecimentos e sofrimentos”, registra o agora jornalista e escritor no livro biográfico Memórias da Prisão. O texto abaixo é o primeiro capítulo do livro, publicado com exclusividade pelo Prosa, Poesia e Arte. Confira.

ai-5
A recém-nascida e o pequeno burguês

Por Paulo Verlaine 

Se não falas, vou encher meu coração com o teu silêncio e suportá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá, a escuridão se dissipará…
Rabindranath Tagore – poeta indiano
–Nasceu? Minha mulher está bem? Menino ou menina? É bonitinha?

O diálogo, por telefone, é de um policial civil jovem, moreno escuro, de óculos, na madrugada de 13 de junho de 1969, com alguém numa maternidade. Ele estava de plantão na pouco divertida e hoje extinta Delegacia de Costumes e Diversões (DCD), localizada no então prédio da Secretaria de Segurança Pública, na Praça dos Voluntários, em Fortaleza (CE). Há exatos 50 anos.

Comenta outro policial, veterano, muito mais tarimbado nas coisas da vida:

–É bonitinha… Vocês ouviram? Ô pergunta besta, rapaz. Cara de criança recém-nascida é igual.Tanto faz. Macho ou fêmea. Bonita ou feia? Ah… Você só vai saber daqui a uns seis meses ou mais. Mesmo assim, muda muito com o tempo.

O pai, “marinheiro de primeira viagem”, fica sem jeito. Risada geral dos demais colegas, ansiosos para o dia clarear e eles passarem a tarefa para outros policiais. Havia rodízio nos plantões de 24 horas nas delegacias, as “especializadas”, no linguajar próprio– quase um dialeto – dos repórteres policiais da época.

Mesmo cansados,os plantonistas cumprimentaram efusivamente o colega. O rádio tocava o samba O Pequeno Burguês: ”Felicidade… Passei no vestibular/Mas a faculdade é particular…” O primeiro grande sucesso nacional do cantor e compositor Martinho da Vila, então com 31 anos. O plantão da quinta-feira para a sexta-feira (13) do mês de junho de 1969 não fora comum. Houve uma ocorrência inusitada, pelo menos para os policiais da Delegacia de Costumes e Diversões.

Fortaleza era pacata no final dos anos 60: os maiores problemas eram brigas em bares e cabarés. Nesse plantão não houve homicídio, nem fechamento de prostíbulo por causa de presença de menores: clientes ou garotas iniciantes na “profissão” do sexo; flagrante por tráfico ou uso de maconha – droga mais consumida na época– se houve, não foi coisa tão importante. Assaltos à mão armada eram quase inexistentes. Ocorriam crimes famosos, às vezes envolvendo pessoasda elite – mas eram raros – e, quando acontecia um deles, haja assunto para o ano todo. Não houve nada parecido com isso nesse plantão.

Que fato incomum foi esse?

Estávamos em plena ditadura militar. O Ato Institucional Nº 5 havia sido decretado noutro dia 13, em dezembro de 1968: fazia exatamente seis meses.O golpe dentro do golpe endurecera ainda mais o regime instaurado em 1964. O marechal gaúcho Costa e Silva era o presidente da República, imposto pelos setores mais duros das Forças Armadas para suceder outro marechal: o cearense Humberto de Alencar Castelo Branco, um dos líderes do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart em 1964. O nome do marechal – depois escolheram generais – era apenas referendado pelo Congresso Nacional no que eles chamavam “eleição indireta”.

Governava o Ceará Plácido Aderaldo Castelo, saído dos quadros da Assembleia Legislativa, também “eleito indiretamente”. Tinha formação pedagógica. Homem sisudo, mas considerado bonachãoe bonvivant pelos amigos, apesarde ter hábitos modestos. Casado com dona Netinha Castelo, os dois tiveram 12 filhos! O prefeito nomeado de Fortaleza era o engenheiroJosé Walter Cavalcante. Homem dinâmico, trabalhador, mas deixou legado danoso para a memória e estética deFortaleza: a reforma aberrante daPraça do Ferreira:blocos de concreto impediama visão de um lado a outro do logradouro (arquitetura de repressão?) e a destruição das grandes árvores – em sua maioria oitizeiros – da Praça Clóvis Bevilaqua.

Na mesma sala onde se comemorava o nascimento da filha do policial estavam presos dois estudantes: Mirtes Semeraro de Alcântara Nogueira, 17 anos, líder estudantil secundarista bastante conhecida em Fortaleza e ex-presidente do grêmio do Colégio Estadual Justiniano de Serpa, mais conhecido pelo nome antigo: Escola Normal.Mirtes foi salva pelo gongo: 16 dias depois (29/6) ela completaria 18 anos; e Paulo Verlaine Coelho, 19 anos, autor deste livro, então aluno do Colégio Farias Brito, do Centro de Cultura Francesa da Universidade Federal do Ceará (UFC) e servidor CLT concursado da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos (ECT), estatal que substituiu o Departamento dos Correios e Telégrafos (DCT).

Eu exercia a função de operador de telefone (telefonista). Não havia DDD (Discagem Direta à Distância) e a ECT se encarregava de fazer ligações para outros estados. O nome do setor era Radiofonia, com centralno Riode Janeiro.

Nós – eu e Mirtes – havíamos sido flagrados e presos num pichamento de muro, por volta de 1h da madrugada, no bairro portuário e pesqueiro do Mucuripe, nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Saúde, onde ainda hoje acontecem festa e quermesse concorridas– já foram mais frequentadas. Outro rapaz, Antônio Augusto Martins de Medeiros, também secundarista, conseguira fugir. Aindapichamos, com spray aerossol, de tinta vermelha, a frase: “Fora Rockfeller ladrão”. Ficou incompleta. O pichamento todo seria:“Fora Rockfeller, ladrão do povo brasileiro. DCE-CESC”. Duas entidades representativas da juventude das faculdades ecolégios: Diretório Central dos Estudantes (universitários) e Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará.

Protestávamos contra a visita do multimilionário norte-americano Nelson Rockfeller ao Brasil, nomeado embaixador Itinerante dos Estados Unidos para a América Latina pelo então presidente Richard Nixon. A Guerra do Vietnã estava no apogeu. As manifestações contra a visita de Rockfeller ocorriam no mês de junho em todo o País. Reuniam principalmente estudantes, liderados, no planonacional, pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela União Brasileirados Estudantes Secundaristas (UBES).A primeira havia sido posta na ilegalidade desde o golpe de 1964, mas atuava de maneira quase aberta até o AI-5 e não paralisou suas atividades com o novo ato de força. A UBES, embora sofresse perseguições, continuou legal mesmo depois do AI-5, mas por pouco tempo.


 
Os diretórios acadêmicos das faculdades e centrais das universitárias e as representações secundaristas nas principaiscidades brasileiras também se engajaram nas “boas-vindas” ao gringo endinheirado e poderoso. Após período de intervenção ou fechamento, essas entidades foram reabertas em 1966, até serem fechadas novamente no final de 1968, também pelo AI-5. Mas, mesmo com a ilegalidade e a repressão, as representações estudantis resistiram até 1971. Depois, houve debandada geral. Muitos entraram na clandestinidade para valer e pegaram em armas contra o regime, muitos foram presos, torturados ou morreram. Outros abandonaram a luta porque, na verdade, não havia a mínima condição de enfrentar o inimigo. O movimento estudantil ressurgiu das cinzas apenas em 1977, com a chamada distensão lenta, gradual e segura de outro presidente militar: o general gaúcho Ernesto Geisel.

A prisão de Mirtes e Paulo Verlaine fora efetuada por um integrante da antiga Guarda Civil, Raimundo Ovídio Martins, na época com 35 anos, armado de pistola. O muro, em terreno ainda hoje pertencente ao Grupo Queiroz, parecia ideal para pichamento, com excelente visibilidade. Em horário de movimento normal, qualquer frase ali escrita seria vista imediatamente por pedestres e pessoas que trafegavam de carro ou de ônibus – indo ou voltando – dos bairros Mucuripe, Serviluz, Varjota, Castelo Encantado e praias do Futuro e Caça e Pesca. O movimento na Avenida da Abolição era praticamente nulo no fim de noite/início da madrugada.

No meio da Avenida da Abolição, olhamos para a direita, para a esquerda, para frente e para trás. Tudo tranquilo. Iniciamos o pichamento. Mirtes começou a escrever. Eu e Antônio Augusto dávamos cobertura a ela, vigiando os lados direito e esquerdo. De repente, surge o guarda. Ele estivera escondido, nos espreitando, no terreno da frente, também murado, com pequena passagem.

Ainda tentamos disfarçar. Enquanto ele se aproximava, deixamos de pichar e sentamo-nos no fio da calçada, como um trio de jovens a conversar. Isso não adiantou. Ele deu-nos voz de prisão e puxou uma pistola. Nós três estávamos desarmados. Procurei dissuadi-lo, dizendo que ele iria nos prejudicar muito com aquilo. Na discussão, altercação,com o guarda minha camisa foi rasgada por ele à altura do colarinho. Antônio Augusto aproveitou a confusão e fugiu. O representante da repressão ameaçou: “Se alguém mais tentar fugir eu atiro”. Imediatamente um táxi, dirigido pelo motorista Valdemiro Moreira da Silva, que passava pela avenida, foi chamado pelo guarda. Este obrigou, sempre com a arma na mão, eu e Mirtes a entrar no veículo, aboletando-se nele também. O motorista nos conduziu à subdelegacia do Mucuripe (hoje não existe mais). Fomos atendidos pelo então subdelegado do Mucuripe, inspetor João Bernardino Chaves. A demora ali foi pouca. Em menos de meia hora, “uma muito escura viatura” * (obrigado, Chico Buarque) chegou para nos levar à Secretaria de Segurança Pública.

A estada dos dois presos políticos na Delegacia de Costumes e Diversão, única de plantão, também seria provisória. Aguardávamos apenas o início do expediente matinal para sermos transferidos para o setor especializado: a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), onde seríamos interrogados. A DOPS funcionava no mesmo prédio, um andar abaixo da DCD.

A via-crúcis, no entanto, não pararia na DOPS. Ainda haveria, em etapa posterior, a transferência da dupla para a Delegacia de Polícia Federal de Fortaleza (esta ainda não ganhara ainda o status de Superintendência Regional), mas avocava para si todos os casos e inquéritos relativos ao que eles chamavam de subversão. Após interrogatórios e depoimentos na PF a próxima etapa era o Quartel-Generalda Polícia Militar, onde os presos aguardavam o julgamento pela Auditoria da 10ª Região Militar ou o relaxamento de prisão para responder o processo em liberdade.

A alegria do policial com o nascimento da filha, a brincadeira dos colegas com o pai estreante aliviaram minha mente por alguns momentos. Quando eles riram, eu também sorri, timidamente. O samba do Martinho da Vila, O Pequeno Burguês –expressão muito usada por nós, de esquerda, sinônimo de alguém da classe média – também contribuiu para que eu relaxasse um pouco. Até àquele momento, só pensava em tortura, no sofrimento da minha família e nos papéis partidários clandestinos que estavam lá em casa. Não eram muitos, mas o suficiente para causar muitos aborrecimentos e sofrimentos.

Onde estará essa menina, hoje uma senhora de 50 anos, nascida exatamente na madrugada de 13 de junho de 1969? O que faz agora? Seguiu qual profissão? Mora em Fortaleza? Noutro Estado? Noutro país? Está casada? É mãe, avó? Como vai comemorar o aniversário? Foram perguntas que fiz a mim mesmo na madrugada do dia 13 de junho de 2019.

Espero que esteja muito feliz.

* Paulo Verlaine, jornalista e escritor, foi ombudsman do jornal “O Povo”, de Fortaleza (CE). Texto extraído de seu romance biográfico