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Tâmara Kovacs: Quando a Língua Portuguesa encontrou Homero e a Ilíada

Quem ama a Língua Portuguesa sabe que ela não é estanque, não é um dicionário ou uma gramática, matéria morta a ser decorada. A língua é um processo vivo, no qual constantemente são recuperadas tradições e construídos novos significados e visões de mundo.

Por Tâmara Kovacs*

O triunfo de Aquiles

É pela língua que é construído e moldado nosso pensamento, como nos ensina Vygotsky. Um pensamento revolucionário, progressista e inovador sabe reconhecer o valor inestimável de mudanças e novidades que desabrocham constantemente em seu solo fértil.

Por muito tempo, perdurou um conceito de língua derivado do platonismo. Acreditava-se que as línguas, tais como “rótulos”, davam caráter sonoro e escrito à essência imanente das coisas do mundo. Já mais para os tempos do Romantismo, havia a ideia de que a língua expressava o espírito de uma nação ou de um povo, tendo, portanto, um caráter. Sob essa perspectiva, era difícil aceitar mudanças e criações na língua e com a língua. Por isso, invariavelmente foi polêmica a questão da formação de palavras.

Em Portugal, na transição do século 18 para o 19, as tendências de criação literária recuperavam a estética da poesia clássica greco-latina. Os estudiosos da literatura denominaram o período “Neoclassicismo”, ou “Arcadismo”, graças à fundação da Arcádia Lusitana – grupo de poetas e eruditos seguidores dessa tendência ao clássico no fazer poético. Exatamente por essa recuperação dos clássicos, datam desse período as primeiras experiências de tradução da Ilíada, de Homero, para o português – embora a primeira tradução integral tenha vindo a lume apenas no fim do século 19, pelas mãos do brasileiro Odorico Mendes.

A primeira versão da Ilíada integralmente em português foi traduzida pelo brasileiro Odorico Mendes 

Aos nossos olhos, são muito semelhantes as correntes “francesa” do Neoclassicismo português, representada por Bocage, por exemplo, e a “latina”, da qual Filinto Elísio é expoente. Ambas recorrem a recursos estéticos típicos da época. Contudo, há ao menos uma importante diferença entre elas – o cunhar de termos novos na língua a partir de radicais latinos e gregos, procedimento que a corrente “latina” procurava fazer. Muitos dos termos que esses poetas cunharam são, hoje, palavras oficiais em nossa língua.

A elocução intrincada e repleta de termos retirados diretamente do latim, ou construídos a partir de verbetes greco-latinos, é herança dessa “escola latina” iniciada por Filinto Elísio, ele mesmo tradutor de poesia latina. Também era característico da “escola” filintista um certo teor arcaizante do vocabulário – o uso de arcaísmos como “dões”, “soer” e “petrina”.

Vemos, portanto, que era recurso desse grupo recorrer tanto a processos de “atualização” da língua, criando palavras, como a recuperação de tradições, ao resgatar usos já perdidos, o que ampliava a quantidade de vocábulos em uso. Essas estratégias nos lembram muito o estilo de Guimarães Rosa, quando nos sentimos perdidos entre saber se um termo foi por ele cunhado ou resgatado dos rincões distantes e perdidos do passado da língua.

Barbarismos

O conceito de língua subjacente a quase todas as escolas literárias europeias da época era que a variedade é constituinte de beleza e qualidade linguísticas. Para essa corrente classicizante, cunhar novos termos e recuperar termos antigos eram um meio de garantir tal variedade. Por meio desses vocábulos, os poetas e os escritores de prosa poderiam proporcionar uma gama mais diversificada de sons e, por conseguinte, tornar a língua superior, conforme o conceito de então.

Busto de Homero, autor da Ilíada

Quanto à expressividade, havia uma percepção de que a Língua Portuguesa carecia de palavras “carregadas de valor semântico”. Sentia-se falta de palavras para exprimir com exatidão termos e conceitos técnicos ou que demandassem precisão. Essa busca seria suprida pelos empréstimos do latim. Nos mais variados tipos de texto, os neologismos supririam a carência de termos expressivos e de rigor léxico no português.

O empréstimo de vocabulário latino e inserção de novos termos ao português não era restrito ao meio poético. A cunhagem de palavras ao modo latino, como “muri-cercada”, e a introdução das próprias palavras latinas, como “conviva”, eram consideradas um fator enriquecedor da língua de todos os falantes, não apenas dos poetas.

Para os adeptos a esse recurso, criar algumas palavras e recuperar outras antigas ajudava a garantir diferenças de estilo, isto é, proporcionava mais palavras para cada tipo de elocução retórica – elevada, média ou baixa – conveniente à nobreza ou à vileza da matéria, da ação, das personagens.

Assim, pelo acesso a uma maior variação sonora, expressiva e estilística, a variedade de vocábulos garantiria a riqueza e o valor da Língua Portuguesa.

Os contra-argumentos dados ao grupo de escritores adeptos ao emprego desses termos são patentes na crítica da época – e, pasmem, há quem até hoje os sustente. De modo geral, percebemos que a desaprovação se sustentava no conceito de “linguagem pura”, ou de “norma purista” da linguagem.

Os literatos se preocupavam ininterruptamente com a absorção de palavras e usos gramaticais estrangeiros pelo vocabulário português, considerados as mais das vezes “conspurcações” da língua portuguesa pura – daí serem chamados de “barbarismos”. Como dissemos, a noção de que cada língua tinha um caráter único e específico era comum.

Ora, para aqueles literatos – dos mais puristas aos mais progressistas –, a absorção de vocábulos do latim ou do grego não era igual à de termos de línguas “vulgares” – as línguas não clássicas. Tomar empréstimos do latim e do grego era considerado “construção do português”, desde que respeitasse o “gênio” da Língua Portuguesa (esse “espírito” de que falamos mais acima). Já o uso de termos de línguas modernas, ou vulgares, era considerado uma invasão de barbarismos, completamente alheios a esse “gênio”.

O problema dos neologismos não era, portanto, fazer uma mera derivação – mas atrair termos que não consideravam condizentes com o “espírito” e a norma da Língua Portuguesa. Hoje, analogamente, brandem-se bandeiras de conservadorismo contra o “inimigo” imaginário que são as influências de outras línguas e considera-se “erro” o uso derivado das línguas dos povos originários e de povos africanos sequestrados.


Ilustração de uma das edições da Ilíada

 

Elipino x Odorico

Voltemos à Ilíada. Nas primeiras traduções da obra de Homero, há duas linhas verificáveis entre o fim do século 18 e o fim do 19 em Portugal:

A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico: essa linha se submete à estética neoclássica de composição poética (versos decassílabos brancos, ausência de estrofes, sintaxe simples, etc.). É herdeira de Filinto Elísio (o que acarreta certa tendência “estrangeirizante” manifesta no cunhar de neologismos). Dela participam poetas hoje quase desconhecidos, como José Maria da Costa e Silva, Antônio Maria do Couto, Antônio José Viale, João Félix Pereira e, finalmente, o maranhense Odorico Mendes.

A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um épico: essa linha se submete à tradição épica de Portugal, a saber, a estética camoniana dos Lusíadas, admitindo caráter mais “domesticante” quanto à tradução. Dela participam, por exemplo, a Marquesa de Alorna e Mendes Leal Jr.

Sabemos que os epítetos – termos e expressões qualificativos tipicamente dados a personagens em Homero, como “dedirrósea” aurora e aqueus “de fina greva” – são frutos da composição e da transmissão orais das poesias. Os tradutores da linha que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico, em menor ou maior escala, utilizam o recurso de cunhar neologismos ou a recuperação de termos latinos e gregos.

Diversos epítetos utilizados cerca de 40 anos antes da publicação das traduções de Odorico Mendes apresentam, senão traduções muito semelhantes, a mesma estratégia de tradução, que consiste na união de radicais greco-latinos ou portugueses para a formação de neologismos. Podemos ter uma ideia melhor desse recurso ao ler a invocação de abertura da Ilíada nas traduções de dois poetas – Elipino Duriense (período neoclássico português) e Odorico Mendes (herdeiro da mesma corrente, mas já do Romantismo):

Muitos dos termos cunhados por esses poetas estão dicionarizados hoje em dia, como “pulcrícomo” e “argentípede”. São palavras que se tornaram parte da língua segundo instrumentos oficiais. O que era considerado “conspurcação” do português hoje é parte oficial dele.

A contribuição desses poetas para a manutenção da língua como processo vivo perdura até hoje. Por causa de Odorico Mendes, também Haroldo de Campos acolhe, ao traduzir em dodecassílabos a Ilíada, o expediente de cunhar epítetos a essa maneira. E é por causa de Haroldo de Campos que Trajano Vieira se integra a essa tradição, cunhando igualmente novos epítetos e dando continuidade a esse recurso estabelecido no distante período neoclássico.

O professor Trajano Vieira e o poeta Haroldo de Campos, que traduziram a Ilíada

Essa tradição nos faz relembrar o quanto somos devedores de poetas e escritores já esquecidos e distantes no tempo e espaço. Ao ousar criar e manter a língua em seu processo de constante renascimento – a contragosto dos puristas fiscais de línguas alheias –, esses autores deixaram sua marca inovadora. É também um convite ao reconhecimento de nosso pertencimento a tradições e à ousadia. Celebremos a língua indômita!

* Tâmara Kovacs é professora de Língua Portuguesa em Santos (SP). Graduada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), é autora da pesquisa Ensaios e Experiências de Tradução da Ilíada no Oitocentismo Português (Fapesp, 2013)