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Claudio Daniel: Paulo Leminski, 30 anos de saudades 

Paulo Leminski, escritor, ensaísta, letrista de música popular, crítico literário, tradutor e um dos mais inventivos poetas de sua geração, faleceu há 30 anos, no dia 7 de junho de 1989, com apenas 45 anos de idade, vítima de cirrose hepática.

Por Claudio Daniel*

Leminski

“Paulo Leminski virou uma legenda, uma espécie de ‘mito’ da poesia mais recente produzida no Brasil. Para isso contribuiu, sem dúvida, a sua morte prematura; nesse sentido, está ao lado de companheiros ilustres: Mário Faustino, Torquato Neto. Foi um tipo algo romântico e radical, que via (e vivia) a poesia em tudo”, conforme escreveu o poeta mineiro Carlos Ávila.

A vida irreverente e boêmia do poeta, sem dúvida, contribuiu para a construção do mito, que recorda a jornada de astros de rock como Jimmi Hendrix e Janis Joplin. Sua obra, porém, supera o encanto circunstancial da biografia pela densidade estética e referencial.

A poesia de Leminski descende do rigor formal do Concretismo, mas ele também incorporou influências da contracultura, da linguagem publicitária, da cultura japonesa, do zen-budismo, da música pop, das histórias em quadrinhos e escreveu sobre os mais variados temas, desde questões políticas (“en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras, noches, poemas”) até existenciais (“apagar-me / diluir-me / desmanchar-me / até que depois / de mim / de nós / de tudo / não reste mais / que o charme”), quase sempre fazendo uso da ironia, do humor, da linguagem coloquial, dos trocadilhos e da musicalidade dos versos.

A gíria, o palavrão e a dicção urbana também são frequentes em sua obra, como neste poema: “o pauloleminski / é um cachorro louco / que deve ser morto / a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhadaputa / de fazer chover / em nosso piquenique”, assim como elementos formais assimilados da vanguarda, como a eliminação da pontuação, o uso exclusivo de letras minúsculas, a disposição geométrica das palavras na página, o emprego de neologismos e de palavras-valise, que multiplicam as possibilidades de significação do texto. O artesanato poético de Leminski valoriza ainda recursos da poesia tradicional, como as rimas, que são essenciais para a estrutura rítmica de seus poemas.


Leminski posa para foto em sua casa, em Curitiba, durante uma entrevista em 1986 

O autor curitibano, “mestiço de polaco com negra”, como ele mesmo gostava de se apresentar, ingressou aos 12 anos no Mosteiro de São Bento, onde adquiriu conhecimentos de latim, teologia, filosofia e literatura clássica. Em 1963, abandonou a vocação religiosa. Viajou a Belo Horizonte para participar da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, onde conheceu Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, criadores do movimento internacional da Poesia Concreta. No ano seguinte, publicou seus primeiros poemas na revista Invenção, editada pelos concretistas, e torna-se professor de História e Redação em cursos pré-vestibulares, experiência que motivou a criação de seu primeiro romance, Catatau (1976), ambientado em Recife, durante as Invasões Holandesas. Leminski também atuou como diretor de criação e redator em agências de publicidade, o que contribui com a sua atividade poética, pela convivência com profissionais de comunicação visual.

Fascinado pela cultura japonesa e pelo zen-budismo, Leminski foi faixa-preta e professor de judô, escreveu haicais e uma biografia de Matsuo Bashô. Colaborou em revistas de vanguarda, como Raposa, Muda, Qorpo Estranho e fez parcerias musicais com Caetano Veloso e Itamar Assumpção, entre outros. O interesse pelos mitos gregos, por sua vez, inspirou a prosa poética Metaformose.

Paulo Leminski exerceu atividade intensa como crítico literário e tradutor, vertendo para o português obras de James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima, Alfred Jarry, entre outros. Politicamente, foi de esquerda, integrou os quadros do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e escreveu no jornal Voz da Unidade, embora nunca tenha sido um marxista-leninista ortodoxo. Seu temperamento, talvez, estivesse mais próximo ao anarquismo.

Em 1968, casou-se com a poeta Alice Ruiz, com quem viveu durante 20 anos, e teve três filhos: Miguel Ângelo (morto aos 10 anos de idade), Áurea e Estrela. Em 7 de junho de 1989, o poeta faleceu no Hospital Nossa Senhora das Graças, vítima de cirrose hepática, e foi velado na Reitoria da Universidade Federal do Paraná.

Obra criativa, densa e plural

Os primeiros livros do autor, Não Fosse Isso e Era Menos / Não Fosse Tanto e Era Quase e Polonaises (1980, ed. do autor), foram reunidos, com o acréscimo de novos poemas, em Caprichos e Relaxos (1983), que desde a sua primeira edição exerceu notável influência nas gerações mais jovens. Em Distraídos Venceremos (1987), o poeta curitibano reuniu peças densas e reflexivas que discutem temas relacionados à história, à leitura, ao amor, à perda da fé religiosa, e sobretudo à própria poesia, como em M, de Memória: “Os livros sabem de tudo. / Já sabem deste dilema. / Só não sabem que, no fundo, / ler não passa de uma lenda”. No final do volume, Leminski incluiu um caderno chamado Kawa Cauim: Desarranjos Florais, uma seleção de 27 haicais irônicos e concisos como este: “alvorada / alvoroço / troco minha alma / por um almoço”. Após a morte do poeta, foram editados dois livros com poemas póstumos, La vie em close (1991) e O Ex-Estranho (1996), que reafirmam a posição Leminski como o nome mais destacado de sua geração.

A prosa de ficção de Leminski inclui os romances Catatau (1976), Agora É que São Elas (1984), Metaformose (1994) e o livro de contos O Gozo Fabuloso (2004). Classificar esses textos como “romances”, “novelas” ou “contos”, porém, é bastante arriscado, conforme escreveu Maria Esther Maciel, pois “Leminski experimentou e mesclou todos os gêneros, num movimento de abertura ao híbrido, ao mutante”, não respeitando as fronteiras entre poesia, ficção ou ensaio. O romance Catatau, por exemplo, embora tenha uma trama ficcional que se desenvolve a partir de uma visita imaginária do filósofo francês René Descartes ao Brasil, acompanhando a comitiva de Maurício de Nassau, no período das Invasões Holandesas, descarta a construção linear de tempo, espaço e personagem, própria do realismo, e se aproxima de textos experimentais como o Finnegans Wake, de James Joyce, do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ou das Galáxias, de Haroldo de Campos. Como declarou o próprio Leminski “O Catatau não tem enredo. Tem apenas um contexto. No Catatau, quase nada acontece. No sentido da narrativa do século 19, claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece quase tudo”.

O texto inventivo de Catatau dissolve a distinção entre prosa e poesia e faz amplo uso da paródia e da sátira, incorpora neologismos, arcaísmos, palavras em línguas estrangeiras, citações eruditas e provérbios populares, sendo por isso considerado um exemplo de literatura neobarroca, gênero fundado na América Latina pelo cubano Lezama Lima, que tem como principal característica a mestiçagem de estilos.


Leminski fez dezenas de parcerias musicais, com músicos como Caetano Veloso (à esq.) e Moraes Moreira (à dir.)
 

O trabalho de Leminski como tradutor não foi menos notável. O poeta traduziu Satiricon, de Petrônio, diretamente do latim para o português; traduziu o relato Sol e Aço, de Yukio Mishima, e haicais de Bashô a partir dos textos originais japoneses; traduziu o Supermacho, de Alfred Jarry, escrito em francês, além de poemas, novelas e textos inventivos de James Joyce, Lawrence Ferlinghetti e John Lennon, escritos em inglês, entre outras obras.

Paulo Leminski deixou ainda um livro de literatura infantil, Guerra Dentro da Gente (1988); uma coletânea de ensaios, Anseios Crípticos (1986); e dezenas de parcerias musicais feitas com músicos como Caetano Veloso, Moraes Moreira, Arnaldo Antunes e Itamar Assumpção. Sua correspondência com Régis Bonvicino foi publicada no livro Envie Meu Dicionário (1998), que reúne ainda textos críticos de autores como Carlos Ávila e Boris Schnaiderman sobre o trabalho do poeta curitibano. Nos dias de hoje, Paulo Leminski é ainda um dos poetas que mais influenciam as gerações mais novas, o que só revela a extrema atualidade de sua poesia.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte