Em parceria com o Centro de Memória Sindical, o Prosa, Poesia e Arte publica, semanalmente, a seção Música e Trabalho. Nesta coluna, a canção apresentada é Construção, de Chico Buarque. Desde sua composição, em 1971, essa música figura entre as obras-primas não apenas do repertório de Chico – mas de toda a Música Popular Brasileira (MPB). Confira!
Publicado 07/06/2019 12:04 | Editado 13/12/2019 03:29
A música é elaborada na cadência da construção civil, simulando o ritmo do trabalho do pedreiro. Desta forma ela expressa, através de sua poesia concreta, a aridez e a rudeza da vida deste trabalhador. Cada aspecto desta vida fragmentada parece circunscrito a um bloco.
Tal como suas edificações, a vida do trabalhador da construção civil está, segundo a poesia de Chico Buarque, padronizada, projetada. Por isso as mudanças das sequências não interferem na harmonia. A morte, enfim, em mais um acidente de trabalho, é vista pela sociedade como um transtorno por atrapalhar o fluxo de carros, e não como um ato trágico que contempla o valor da vida.
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair,
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
[Composição: Chico Buarque (1971) / Intérprete: Chico Buarque]