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Do poeta para o “doutor”: o que Walt Whitman diria a Sócrates

O ano: 1986. Paro o carro num sinal vermelho, na esquina da rua Ibituruna com Mariz de Barros, na Tijuca, Rio de Janeiro. Um carro, certamente não tão tosco quanto o meu velho Fusca branco, para ao lado. Olho para o motorista. Surpresa: é Sócrates, o cracaço da seleção brasileira de 1982. Os dois motoristas trocam aquele olhar levemente inquisidor, típico dos que estão presos num sinal de trânsito.

Por Geneton Moraes Neto*

Sócrates

Sócrates já deveria estar acostumado com a cena: numa situação daquelas, quando o outro motorista o reconhecia, certamente o cumprimentava com um meneio da cabeça. É o que fiz. O sinal abriu, como na música de Paulinho da Viola. E lá se foi o “Doutor”. Naqueles tempos, ele jogava pelo Flamengo. Fiquei imaginando: se tivesse tido tempo de trocar duas palavras, teria perguntado por que diabos ele não tomou distância da bola naquela desgraçada disputa de pênaltis no jogo contra a França, na Copa do Mundo de 1986? Sócrates perdeu o pênalti. Por que diabos ele não conseguiu, no minuto final da prorrogação, alcançar a bola que passou a centímetros de distância de seus pés, na pequena área da França? Ia ser um gol épico. Mas a batalha se perdeu. O Brasil foi eliminado pela França.

Minhas perguntas seriam inúteis. Não, se Sócrates tivesse chegado a tempo naquele lance dramático na pequena área da França ou se tivesse acertado o pé na disputa de pênaltis, a história seria outra. Mas a história não se faz com “se”. Se o capitão Sócrates tivesse levantado a taça na Copa do Mundo de 1982 ou se tivesse avançado para as finais da Copa de 1986, ah, Sócrates não seria Sócrates. Não teria carregado pelos tempos aquela bela aura de anti-herói. Quem disse que só os vencedores merecem as glórias? Os que afundaram, afundam e afundarão no mar um dia haverão de ganhar uma faixa no peito. Porque os derrotados, os outsiders, os desperdiçados, os emudecidos são, em noventa por cento dos casos, mais interessantes que os intocáveis, os vitoriosos, os bem-sucedidos…

“Vocês já ouviram dizer / que ganhar o dia é bom? / Pois eu digo que é bom também perder: batalhas são perdidas / com o mesmo espírito / com que são ganhas / Eu rufo e bato pelos mortos / e sopro nas minhas embocaduras/o que de mais alto e mais jubiloso posso por eles” – disse o poeta Walt Whitman, em Folhas de Relva.

Se tivesse vivido nestes tempos, Whitman poderia ter escrito sobre Sócrates, capitão de um barco naufragado.

Hoje é dia de lembrar o poeta Whitman, em homenagem ao Capitão que não levantou a taça na Copa de 1982 nem avançou para as fases finais da Copa de 1986:

Senhoras e senhores jurados, peço a palavra. Compareço espontaneamente a este tribunal, em nome de Carlos, Josimar, Júlio César, Edinho, Branco, Alemão, Sócrates, Júnior (Silas), Elzo, Muller (Zico) e Careca, para tentar corrigir uma injustiça histórica. Ainda é tempo.

Ouso perguntar: qual foi a Seleção Brasileira que passou quatro jogos (e meio) de uma Copa sem sofrer um gol sequer? Qual foi a Seleção que tinha, portanto, uma defesa intransponível? Qual foi a Seleção Brasileira que só se despediu de uma Copa porque tropeçou na “loteria dos pênaltis”? Excluídos os fanáticos, dificilmente alguém se lembrará – mas foi a Seleção de 1986, a Grande Injustiçada.

O senso de justiça obriga este advogado a proclamar: os brasileiros que pisaram no gramado do Jalisco, em Guadalajara, para combater o exército francês no dia 21 de junho de 1986 foram personagens de uma das mais emocionantes atuações de uma Seleção Brasileira numa Copa.

O videoteipe me socorre. Revejo as fitas da epopeia. Os minutos finais da prorrogação foram um daqueles momentos capazes de acelerar os batimentos cardíacos do mais estóico dos torcedores. Cometo a petulância de corrigir Nélson Rodrigues: não, o videoteipe não é burro. O videoteipe é a redenção da Grande Injustiçada, a Seleção de 1986, porque guardará para sempre a coleção de momentos arrebatadores daquela prorrogação. Ali, o futebol misturou drama, arte, alegria e sofrimento. Faltam três minutos para o fim da prorrogação. Placar: 1 a 1. A França avança num contra-ataque. Uma catástrofe brasileira começa a se desenhar: ninguém consegue deter Bellone – que dispara rumo ao gol. Ah, a épica solidão do artilheiro na hora fatal! O supergoleiro Carlos sai desesperado. Voa sobre Bellone. Consegue desequilibrar o candidato a carrasco. Elzo tira a bola da área.

Um segundo depois, o Brasil arma um contra-ataque que poderia ter decidido tudo. Exausto, o time avança como se fosse um afogado tentando o último suspiro. Careca faz um cruzamento, Sócrates corre para marcar o gol redentor. A bola passa a centímetros de seus pés. Não é exagero: centímetros. O gol estava escancarado. Bastaria um mísero toque. Eis a crueldade do futebol: a distância entre a glória e o esquecimento pode ser um átimo, uma fagulha, um milímetro. O jogo terminou 1 a 1. A França venceria por 4 a 3 a disputa de pênaltis.


O goleiro francês Bats defende a cobrança de pênalti de Sócrates, nas quartas-de-final da Copa-1986, no México
 

Tenho também um motivo pessoal para escolher esse jogo. Fui testemunha auditiva de uma ovação inesquecível. Quando as câmeras mostraram Zico se levantando do banco de reservas para entrar em campo, a torcida que acompanhava o jogo, nas casas e apartamentos daquela rua da Tijuca, vibrou como se comemorasse um gol. Ouvi, claro e nítido, aquele rumor indescritível da torcida. Deve ser o que chamam de “a voz rouca das ruas”. Zico jamais soube daquela cena. Mas, a 8 mil quilômetros de distância do México, numa rua da Tijuca, meninos, eu ouvi: nunca a imagem de um jogador se levantando do banco de reservas mereceu tamanha ovação da torcida. Ah, essa paixão tão bonita, tão inútil – e tão brasileira. Por favor, esqueçam que Zico desperdiçou um pênalti.

Peço aos Senhores Jurados que absolvam a Seleção de 1986. Aquela prorrogação redime tudo. O final da prorrogação, por todos os motivos, foi inolvidável. Sim, inolvidável. Faço uma confissão: ainda menino, ouvi a palavra “inolvidável” pronunciada com pompa pelo locutor de um thriller de cinema. Corri ao dicionário. Sempre quis usá-la num texto. Tive de esperar décadas por uma chance. Acabo de satisfazer o desejo: uso “inolvidável” porque não me ocorre palavra melhor para descrever o desempenho da Grande Injustiçada de 1986 naqueles minutos dramáticos da prorrogação em Guadalajara.

Acorda, grande poeta Walt Whitman! Vem cantar conosco para os derrotados de todas as Copas: “Vivas àqueles que levaram a pior! E àqueles cujos navios de guerra afundaram no mar! E a todos os generais das estratégias perdidas! Foram todos heróis”.

* Geneton Moraes Neto (1956-2016) foi jornalista e escritor. Este texto foi publicado originalmente na revista Época