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Elder Vieira: Tolerância zero 

O Prosa, Poesia e Arte apresenta hoje a crônica Tolerância Zero, colaboração do escritor Elder Vieira, funcionário do Ministério da Cultura e secretário de Formação do PCdoB-SP. O texto é dedicado ao grande ator e humorista Francisco Milani (1936-2005), que foi militante do do PCB e do PCdoB.

"A Inferioridade de Deus" (1931) - Flávio de Carvalho
Tolerância zero

Por Elder Vieira

(A Francisco Milani)

Péssimo, o meu estado de espírito. Cansado de tanta lida, de prazos, metas, dívidas, compromissos, amanheci disposto à indisposição. Intolerante, monossilábico, a palavra do dia é “não”; a cara, a máscara da impaciência.

Mesmo assim, Marília, no corredor entre as baias, me pega pra cristo e resolve contar da festa:

– O-íí!!
– Como vai?…
– E você não foi à festa, hein!?
– Você não me viu lá?
– Não… – responde confusa.
– Então, é porque não estava.
– Eu estava sim!
– Eu não estava.
– É mesmo! – devolve com um riso álacre.
– Té mais…
– Mas você perdeu uma festona! – insiste atrás de mim pelo corredor.
– Que pena. – retruco, tentando acelerar a marcha.
– Pena mesmo. Você fez falta.
– Como, se nem estava no jogo?
– Que jogo? – parou diante de mim, novamente confusa.
– Esquece.
– Ah, não tem como. Uma big festa. Foi até diretor geral! Foi com a mulher. Enjoada…, mas chiquérrima! E a diretora do RH? Tava até bonita, apesar do nariz chato. As meninas perguntaram muito de você.
– Meninas…
– Isso! As meninas, lá da seção…
– Ah, aquelas adolescentes de quarenta anos?

Outro riso álacre:

– Ah, você não tem jeito. É por isso que a gente adora você.
– Impressionante.
– Não acho. Acho normal, natural.

Segundos de silêncio constrangedor. Ela me olhando com um sorriso de boneca, eu tentando decifrar o absurdo. Não suportando mais, pergunto:

– Você conhece o Dirceu?
– Dirceu?
– Foi o que disse: Dirceu.
– Eu não disse nada.
– Eu disse.
– Ah… Não. Quem é ele?
– É um pastor…
– Credo! O que eu ia querer com um pastor? Olha, tem três coisas que eu não discuto: uma é política; a outra, religião.
– E a terceira?…
– Que terceira?
– Você disse: “Tem três coisas que eu não discuto”. Você mencionou duas.
– Ah, não lembro. Mas esses pastores de igreja são uns falsos. Falo de cadeira: já namorei um. Ele era inclusive diretor do sindicato. Eles chegaram a fazer greve uma vez.
– E Deus ficou sem glória por quantos dias?
– Não sei. Mas a greve durou uma semana. Bom, deixa eu trabalhar um pouco. Ó: vê se não falta no amigo secreto! Tchau.

Estala um beijo em cada uma de minhas bochechas mal barbeadas e se vai, álacre…

Como nos versos de Gonzaga?

Ah, que se danem os árcades, dirceus, marílias e suas estrelas!