Réquiem para Elias Ferreira Lima, irmão de luta e cantoria

Tinha um passo de dança. Mas uma dança assim, passo miudinho, picado, como um sertanejo nas veredas das caatingas, enxada ao ombro, parabelum de través nas costas. Era um pé de valsa. Não tinha moça que não quisesse ir mais ele pro meio do salão. Bailava leve. Conduzia a dama com cortesia de vaqueiro, mestre-de-cerimônia das quadrilhas de São João.

Por Elder Vieira*

Elias Ferreira Lima - Foto: Arquivo

Gostava de dançarás e o mesmo tanto de cantorias. Era juntar uma roda, puxava um côco, um samba, um dor-de-corno, modinha, baião. Cigarro na mão, gelada na outra, embevecia-se com o coro de amigos e moças. Memória colossal, sabia todas as letras e mais algumas.

O mesmo eram as piadas: repertório inesgotável delas ofertava à assistência atenta e pronta pro riso. Conta a lenda que ele e Apolinário Rebelo encetaram um duelo de piadas que varou noite e foi acordar o dia. Os presentes, um a um, ou aos pares, foram caindo, se arranchando nos cantos, vítimas de sono invencível, enquanto os dois desfiavam os respectivos anedotários, sem repetir nenhuma piada, até o galo dizer chega.

Se foi um grande cara, menos não foi como lutador do povo. Secundarista, foi militante aguerrido e hábil. Filho dileto da classe operária, tornou-se quadro do Partido Comunista do Brasil por sua impressionante maturidade e capacidade políticas. Foi um dos mais destacados diretores da UBES – União Brasileira de Estudantes Secundaristas, e uma das mais significativas referências da União da Juventude Socialista.

Não lembro quando o conheci. Lembro de, assim que o vi e ouvi, gostar dele. Não foram tantas as vezes em que estivemos juntos. Não tantas quanto eu queria. Mas, sempre que tinha a sorte de estar com ele, era destes prazeres só explicáveis pelo silêncio.

Como ele gostava de cantar, fazíamos uns duetos juntos. O que ficou pra mim sendo o "nosso dueto" é a música "Amigo é pra essas coisas", gravada pelo MPB4. Ele, qual tenor em pleno Municipal, galerias cheias; eu, tímido, olhando pras pontas do sapato, voz acanhada:

"Salve! Como é que vai?

Amigo, há quanto tempo!

Um ano ou mais…

Posso sentar um pouco?

Faça o favor!

A vida é um dilema…

Nem sempre vale a pena…".

Lembro quando ele conheceu Raquel, sua esposa. Foi num feriado de carnaval em Caldas Novas. Eu, mais minha Preta e Nina, filha minha, fomos até lá de carro, com Raquel, sergipana amorenada e braba como o quê, e Dona Bebé, sua mãe, encanto de doçura. Foi a cabocla descansar a mochila no chão, ele me chama de lado:

– Elder, como é nome dessa morena?

– Raquel – respondo, já querendo rir, adivinhando as intenções do sujeito.

– Rapaz, não é que ela é do meu número?

Demorou nada, ele chama minha filha, à época com uns 7 anos:

– Nina, vou te contar um segredo, mas você não pode contar pra ninguém. Acho que tô apaixonado pela Raquel…

Não deu outra: assim que ele terminou o cochicho conspirativo, ela solta:

– Raqué-el… Adivinha por quem o tio Elias tá apaixonado?…

Os dois se casaram – não sem antes Raquel dar no sujeito uma canseira de fazer dó ao coração mais empedernido -, e botaram no mundo dois filhos (o primeiro foi encomendado lá em casa, quando morava em Brasília, e em minha cama!, num destes almoços após o que todos vão tirar a sesta). Tive a subida honra de ser uma das testemunhas do casório.

Destas e d'outras memórias, tomo a certeza de que perdemos hoje o melhor dentre todos de minha geração – o mais gente fina, o mais sangue bom, o mais elegante e sábio de todos nós. O mais justo. Aquele que, ausentando-se cedo com sua luz, abre uma lacuna enorme em nossas vidas e na vida do País. A falta de Elias pauperiza nossa luta, dói como uma aguilhada no peito, susta o fôlego como uma pancada, como um susto; deixa-nos perplexos, por repentina; e nos põe a meditar: sobre o que é amizade verdadeira, sobre o que é militância autêntica, sobre o que é sabedoria e generosidade.

Hoje, perdi um irmão. Hoje, perdi Elias Ferreira Lima – camarada, amigo, parceiro, marido, pai, trabalhador. Posso dizer, sem medo de soar piegas, que leva com ele um bocado de mim, um pedaço fundo, mas deixa comigo esse afeto sem medida com que me brindava ao me ver e exclamar:

– Elder Vieira! Meu querido! Como vai essa sua pessoa?

– Com saudade de vossa pessoa por demais querida, mestre.

– Égua, macho! Assim você me põe comovido…

São Paulo, 22 de maio de 2019