A melhor ficção é aquela que começa e continua na memória

 A imaginação desancorada, mesmo nas suas variantes mais caprichadas, nunca vai muito longe.

Por Paulo Nogueira Batista Jr.

Rio de Janeiro

 Para Lia.

Quando um escritor, mesmo de modestos artigos quinzenais, se põe diante de uma tela em branco para começar a digitar, deve ter em mente que muitos leitores de jornal, revista ou celular procuram, por um lado, informação, mas, por outro e sobretudo, a confirmação dos seus piores preconceitos. O leitor quer, de preferência, munição – munição para abater seus adversários políticos e intelectuais. Ninguém convence ninguém. E contra argumentos não há fatos.

Existem ainda boas almas, de certo. Há ainda mentes abertas, sem dúvida. Mas tanto estas quanto aquelas estão em minoria, constrangedora minoria. Assim, um articulista progressista que começar um artigo dizendo, digamos, “a reforma da Previdência é indispensável”, arrisca perder metade dos leitores já no primeiro parágrafo. Ou um articulista tucano que subir ao palco da opinião pública para confessar que “o ex-presidente Lula é um prisioneiro político” perderá grande parte dos seus seguidores na internet.

Paro, leitor, com ligeiro sentimento de perplexidade. Como continuar? Vejamos. Não quero aqui fazer apologia da objetividade e da sinceridade, nem pensar. Sempre fui da opinião de que a realidade não é mais do que uma das nossas ficções – a mais enganosa e traiçoeira delas. A realidade política brasileira, por exemplo, é indistinguível da ficção e, infelizmente, da ficção mais precária e ordinária. O que é fake parece fato, mas o fato, não raro, parece fake. O pior é que nem um nem outro é realmente interessante.

Permita-me, leitor, tentar sair um pouco desse rame-rame. Ocorre-me falar um pouco da relação entre o real e o imaginário. O papel do ficcionista, diferentemente do que se pensa, não é transcender a realidade ou fugir dela. O segredo da ficção é ater-se à realidade. Não sabia, mas parece que essa era também a opinião de Gabriel García Márquez. Estou, portanto, em boa companhia.

É que a realidade tem uma estrutura oculta, inacessível à nossa compreensão completa. Essa estrutura é de uma complexidade e riqueza muito superiores a qualquer coisa ao alcance da simples imaginação. O papel do artista é reproduzir a realidade, dramatizando-a talvez, enriquecendo-a aqui e ali, mas sem falseá-la jamais.

Por esse motivo, o grande arquiteto catalão Antoni Gaudí dizia que “ser original é voltar às origens”. E, não por acaso, um dos traços marcantes da sua arquitetura genial, repleta de curvas, contorções, cores e movimento, é a fidelidade à natureza. Não há linha reta na natureza, dizia ele também. Oscar Niemeyer rezava por cartilha semelhante. E, por isso, coube a Le Corbusier exclamar: “Oscar, você tem as montanhas do Rio dentro dos olhos!” Muitos afirmam que a arquitetura de Niemeyer deriva de Le Corbusier. Este viu, porém, de onde vinha a originalidade do seu discípulo carioca.

Não é possível, a rigor, soltar a imaginação, desprendê-la de suas raízes reais, não está a nosso alcance criar ab nihilo. Quando a imaginação se desgarra, a sua falsidade salta aos olhos, sem demora.

Assim, por exemplo, e para ficar no dia a dia, se queremos contar uma história, digamos, um episódio de infância, é fundamental tentar lembrar dos detalhes e não acrescentar nada. Onde entra a criatividade? Não na invenção de falsos acontecimentos, de peripécias mais ou menos implausíveis, mas no encadeamento do relato, na escolha criteriosa das palavras, na maneira de formar as frases, sempre calculando os efeitos que se deseja produzir. O que se busca, ao fim, é a espontaneidade. Mas, paradoxalmente, o que funciona é a espontaneidade elaborada, artificial.

A melhor ficção, então, é aquela que começa e continua na memória, que recupera e relata sem adocicar, sem fantasiar, sem introduzir lances imaginários. E a obediência a esta regra de ouro é justamente o que mais falta na subliteratura. O que mais aparece é o subliterato imaginativo, inventivo e falsamente original. A imaginação desancorada, mesmo nas suas variantes mais caprichadas, nunca vai muito longe.

É preciso ter as montanhas do Rio dentro dos olhos.