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Policrítica na Hora dos Chacais: o poema de Cortázar em defesa de Cuba

Julio Cortázar (1914-1984) é um dos mais importantes escritores argentinos do século 20. Especialmente por seus contos e narrativas curtas, é reconhecido como um mestre da corrente do realismo fantástico. Notabilizou-se, também, por seu engajamento político e sua defesa das causas sociais. Nesta semana, o Prosa, Poesia e Arte publica uma tradução inédita de uma de suas obras mais interessantes e complexas – o poema Policrítica na Hora dos Chacais.

Revolução Cubana

Nesse poema-ensaio – ou poema-intervenção –, publicado inicialmente em 1971 na Revista Casa de las Américas, de Havana (Cuba), Cortázar ambiciona uma “crítica política em que o grito está, como um pulmão que respira”. Com ele, o autor argentino participa do debate relacionado ao famoso “Caso Padilha”, que, em 1971, mobilizou inúmeros escritores a se posicionarem sobre o papel do intelectual no contexto revolucionário. Contra a corrente dominante, Cortázar toma partido da Revolução Cubana, em um poema que articula energia política, beleza cortante, retórica aguerrida e problematização da linguagem.

Repare o leitor no uso muito ácido da ironia que se dirige aos intelectuais e jornalistas que deformam a história a favor de seus interesses de classe. O que Cortázar problematiza nesse longo poema é algo extremamente atual: que papel têm os escritores em relação à conjuntura política? Qual a sua tarefa? O que podem fazer? Quem são os chacais da hora?

O poeta e tradutor Alexandre Pilati é quem assina esta versão em português de Policrítica na Hora dos Chacais. Professor de Literatura da Universidade Brasília (UNB), Pilati é colaborador do Prosa, Poesia e Arte. Confira sua tradução de mais um poema de Cortázar.

Policrítica na Hora dos Chacais
(Julio Cortázar)

Pra que serve escrever boa prosa,
de que serve indicar razões e argumentos
se os chacais vigiam, o rebanho é lançado contra o verbo,
eles o mutilam, pegam o que querem, deixam de lado o resto,
eles tornam o preto branco, o sinal de mais vira sinal de menos,
os chacais são sábios nos telexes,
eles são a tesoura da infâmia e do mal-entendido,
matilha universal, branco, preto, albino,
são lacaios se não assinam e extremamente chacais quando assinam,
de que serve escrever medindo cada frase,
qual é a utilidade de pesar cada ação, cada gesto que expliquem a conduta
se no dia seguinte os jornais, os conselheiros, as agências,
os policiais disfarçados,
os conselheiros do gorila, os advogados dos trustes
se encarregarão da versão mais adequada para o consumo dos inocentes ou crápulas,
fabricarão mais uma vez a mentira que corre, a dúvida que se instala,
e tantas pessoas boas em tanta cidade e tanto campo de tanta terra nossa,
que abre seu jornal e busca a verdade e se encontra
com a mentira maquiada, o repasto pronto, e vai engolindo
lodo pré-fabricado, merda em colunas limpas, e alguns acreditam
e ao acreditar esquecem o resto, tantos anos de amor e combate,
porque é assim que é, compadre, os chacais sabem: a memória é falível
e como nos contratos, como nos testamentos, o jornal de hoje com suas notícias invalida
tudo que o precede, afunda o passado no lixo de um presente traficado e mentiroso.

Então não, melhor ser o que se é,
dizer isso que queima a língua e o estômago, sempre haverá quem entenda
esta linguagem que vem do fundo,
como do fundo brotam o sêmen, o leite, as espigas.
E para quem espera outra coisa, a defesa ou a boa explicação,
a recidiva ou a fuga, nada mais fácil do que comprar o jornal made in EUA
e ler os comentários a este texto, as versões da Reuters ou da UPI
onde sábios chacais lhe darão a versão satisfatória,
onde colunistas mexicanos ou brasileiros ou argentinos
traduzirão, com tanta generosidade,
as instruções do chacal com base em Washington,
eles vão traduzi-las para o espanhol correto, misturado com saliva nacional,
com merda autóctone, fácil de engolir.

Eu não peço desculpas por nada, e sobretudo
eu não perdoo esta linguagem,
é a hora do chacal, dos chacais e seus lacaios:
eu os mando à puta que pariu,
e digo o que vivo e o que sinto e o que sofro e o que espero.

Explicação do título: falando dos complexos problemas cubanos, um amigo francês misturou os termos crítico e político, inventando a palavra "policritique". Ao ouvi-lo, pensei (também em francês) que entre pol tique a sílaba colocada era cri, isto é, grito. Grito político, crítica política em que o grito está, como um pulmão que respira; assim eu sempre entendi, assim vou continuar a sentir e a dizer. Hoje você tem que gritar uma política crítica, você tem que criticar gritando cada vez que acha que é justo: só assim podemos um dia exterminar os chacais e as hienas.

Diariamente, na minha mesa, os recortes da imprensa: Paris, Londres,
Nova Iorque, Buenos Aires, Cidade do México, Rio de Janeiro. Diariamente
(em pouco tempo, apenas duas semanas) a máquina montada,
a operação realizada, os liberais encantados, os revolucionários confusos,
a violação em letras impressas, os comentários compungidos,
aliança entre chacais e santos, o rebanho feliz, tudo está bem.
Custa-me usar essa primeira pessoa do singular, e mais me custa
dizer: isso é verdade ou é mentira. Todo escritor, Narciso, se masturba
defendendo seu nome, o Ocidente
encheu-o de orgulho solitário, quem sou eu
diante dos povos que lutam por sal e vida,
que direito tenho de preencher ainda mais páginas com negações e opiniões pessoais?
Se eu falo de mim mesmo é que talvez, companheiro,
quando essas linhas te encontrarem,
vais me ajudar, eu vou te ajudar a matar os chacais,
vamos ver melhor o horizonte, mais verde o mar e mais seguro o homem.
Falo para todos os meus irmãos, mas dirijo-me a Cuba,
não conheço melhor maneira de abraçar a América Latina.
Eu compreendo Cuba como só se compreende o ser amado,
os gestos, as distâncias e as muitas diferenças,
a raiva, o grito: acima de tudo o sol, a liberdade.
E tudo começa pelo contrário, por um poeta aprisionado,
pela necessidade de entender por que, de perguntar e de esperar,
o que sabemos aqui do que está acontecendo, tantos de nós que somos Cuba,
tantos que diariamente resistimos à aluvião e ao vômito de boas consciências,
dos desencantados, daqueles que vêm mudar esse modelo
que imaginaram por sua própria conta e em suas casas, para dormir calmamente
sem fazer nada, sem olhar de perto, a lua de mel barata com sua ilha paraíso
longínqua o bastante para ser realmente o paraíso
e de repente descobrem que seu lindo céu cai sobre sua cabeça.
Estás certo, Fidel: só na luta existe o direito à insatisfação.
Só de dentro deve sair a crítica, a busca por fórmulas melhores,
sim, mas por dentro é tão fora às vezes,
e se hoje eu me afasto para sempre do liberal para a violeta, dos que assinam os virtuosos textos
por-que-Cu-ba-não-é-isso-que-e-xi-gem-seus-es-que-mas-de-pa-pel,
não me acho uma exceção, eu sou como eles, o que eu tenho feito por Cuba além do amor
o que teria dado por Cuba além de um desejo, uma esperança.
Mas agora eu me afasto do seu mundo ideal, dos seus esquemas,
precisamente agora quando
me cerram a porta do que eu amo, e me é proibido defendê-lo,
é agora que exerço meu direito de escolher, de estar mais uma vez e mais do que nunca
com tua Revolução, minha Cuba, do meu jeito. E meu jeito estranho, aos tropeços
é este, é repetir o que eu amo ou não amo,
aceitando a reprovação de falar de tão longe
e também insistindo (quantas vezes eu fiz isso para o vento)
que eu sou o que sou, e nada sou, e este nada é minha terra americana,
e como eu possa e onde esteja sigo sendo esta terra, e por seus homens
escrevo cada letra de meus livros e vivo todos os dias da minha vida.

Comentário dos chacais (via México, reproduzidos com alvoroço no Rio de Janeiro e Buenos Aires): "O agora francês Julio Cortázar … etc.". Mais uma vez o ufanismo de escarapela, confortável e rendido, mais uma vez a saliva dos ressentidos, de tantos que permanecem em seus poços sem fazer nada, sem ser ouvidos mais do que em suas casas no momento do bife; como se em algo eu deixasse de ser latino-americano, como se uma mudança no passaporte (e nem mesmo é isso, mas não vamos nos dedicar a explicar, o chacal se chuta e apenas isso) fosse modificar o meu coração, fosse mudar meu comportamento, fosse mudar o meu caminhar. É muito repugnante continuar com isso; meu país é outra coisa, nacionalista infeliz; eu limpo o ranho com sua bandeira de pacotilha, onde quer que você esteja. A revolução também é outra coisa; ao fim, muito distante, talvez infinitamente distante, há uma magnífica queima de bandeiras, um incêndio dos trapos manchados por todas as mentiras e pelo sangue da história dos chacais e dos ressentidos e dos medíocres e dos burocratas e dos gorilas e dos lacaios.

É isso aí, companheiros, se me ouvem em Havana, em qualquer parte,
tem coisas que eu não engulo
tem coisas que eu não posso engolir em uma marcha em direção à luz,
ninguém conquista a luz deixando de iluminar os fantasmas podres do passado,
se os preconceitos, os tabus do macho e do feminino
seguem em suas maletas,
e se um vocabulário de casuístas quando não de energúmenos
arma a burocracia da linguagem e os cérebros, condiciona os povos
que Marx e Lenin sonharam livres por dentro e por fora,
na carne e na consciência e no amor,
na alegria e no trabalho.
Por isso, companheiros, sei que posso lhes dizer
o que eu acredito e o que não acredito, o que aceito e o que não aceito,
esta é a minha policrítica, minha ferramenta de luz,
e em Cuba eu sei dessa luta contra tantos inimigos,
sei dessa ilha de homens inteiros que nunca esquecerão o riso e a ternura,
que irão defendê-los enamoradamente,
que cantam e bebem entre os turnos da luta, que fazem a guarda fumando,
que são os que Martí procurou, os que assinaram com seu sangue tantos mortos
na hora de cair frente a chacais de dentro e a chacais de fora.
Não serei eu a proclamar ao delator divino a coragem de Cuba e seu combate;
há sempre alguma hiena maquiada de juiz, poeta ou crítico,
pronta para cantar loas ao que odeia no fundo de suas entranhas,
pronta para sufocar a voz daqueles que querem um verdadeiro diálogo, o contato
de alto a baixo: o contato com esse homem que comanda o perigo porque o povo
conta com ele e sabe
que aí está porque é justo, porque nele se define
a razão da luta, do duro caminho,
porque fez sua vida com Camilo e o Che e tantos que povoam
de ossos e lembranças a terra da palma;
e também em contato
com o outro, o simples camarada que precisa da palavra e do rumo
para melhor conduzir a máquina, para melhor cortar a cana.

Ninguém espere de mim o elogio fácil,
mas hoje é mais do que nunca tempo de decisão e águas claras:
diálogo peço, encontro nas borrascas, policríticas diárias,
não aceito a repetição de humilhações torpes,
não aceito confissões que chegam sempre tarde demais,
não aceito risadas dos fariseus convencidos de que tudo vai bem depois de cada exemplo,
não aceito a intimidação nem a vergonha. E é por isso que aceito
a crítica real, aquela que vem daquele que segura o leme,
daqueles que lutam por uma causa justa, lá ou aqui, no alto ou no chão,
e reconheço a torpeza de querer saber tudo de uma mera escrivaninha
e humildemente busco a verdade nos acontecimentos de ontem e de amanhã
e busco teu rosto, Cuba tão querida, e eu sou aquele que foi a ti
como se vai beber água, com a sede que será fragmento ou canção.
Revolução feita de homens
cheia estarás de erros e desvios, cheia estarás de lágrimas e ausências,
mas a mim, aos que em tantos em horizontes somos pedaços de América Latina,
tu nos entenderás ao fim do dia,
nos encontraremos novamente, para ficarmos juntos, porra,
contra hienas e porcos e chacais de qualquer meridiano,
contra fracos e frouxos e escribas e lacaios
em Paris, em Havana ou Buenos Aires,
contra o pior que dorme no melhor, contra o perigo
de ficar parado no meio da estrada, de não cortar os nós
a facadas limpas,
e eu sei que um dia nos veremos novamente
bom dia, Fidel, bom dia, Haydée, bom dia minha Casa,
meu lugar de amigos e ruas, meu garotinho, meu amor,
meu pequeno jacaré ferido e mais vivo do que nunca,
eu sou esta palavra de mãos dadas como outros são teus olhos ou teus músculos
todos juntos iremos para a futura colheita,
para o açúcar de um tempo sem impérios ou escravos.

Vamos conversar, é sobre homens: no começo
foi o diálogo. Deixe-me defender-te
quando vier o chacal da vez, deixe-me estar lá. E se não for o que queres
olha, compadre, esquece tanta crise barata. Comecemos de novo,
diga lá, aqui estou, aqui te espero; pega, fuma comigo,
longo é o dia, a fumaça afugenta os mosquitos. Tu sabes,
eu nunca estive tão perto
como agora, de longe, contra todas as probabilidades. O dia nasce.