Angela Alonso: Os passos da destruição da democracia brasileira

Professora de sociologia da USP e presidenta do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, além de autora de “Flores, Votos e Balas”, escreve em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo que “é difícil definir tanto o começo quanto o fim de uma democracia”.

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Ela faz um breve história da trajetória da democracia desde o fim do regime militar e analisa os ataques autoritários que afrontam a Constituição de 1988. “Tão difícil como definir a inauguração de uma democracia é identificar o ponto sem volta de sua desagregação”, escreve ela. “A nossa ficou combalida desde os protestos de junho de 2013 ou desde a contestação dos resultados eleitorais pelo perdedor em 2014? O passo em falso foi a prisão de Lula, o afastamento de Dilma, a eleição de Bolsonaro ou a montagem de seu governo?”, indaga.

Angela Alonso responde que “há tempos afundamos no que o sociólogo francês Michel Dobry chamou de ‘conjuntura política fluida’: alinhamentos políticos costumeiros desabaram, Poderes trombaram entre si, leis claudicaram”. “A imprevisibilidade política se espalhou, não se sabe que rumo tomará o Parlamento, que dirá o Executivo. Os atores políticos oscilam entre atônitos e erráticos, as regras se esgarçaram e a confiança em acordos se esvaiu”, afirma.

Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, o que parecia a salvo de intempéries na democracia brasileira entrou em zona de tiro: dos direitos individuais à vigência das leis, comenta. “O fato de o presidente ser partidário apaixonado do regime militar e do coronel Ustra, o rei dos torturadores, é, por si, uma evidência. As tentativas de controle de pensamento, ensino e pesquisa, outra. A incerteza subiu ao nível da estratosfera —para os que ainda consideram a Terra redonda e dotada de uma”, analisa.

“Daqui em diante, o raciocínio pode bifurcar. Uma interpretação é que as instituições se sobreporão a seus ocupantes e sobreviverão a eles. Uma democracia é justamente o regime político no qual as regras se impõem às vontades, capazes de conter mesmo líderes autoritários. Aliás, é seu grande teste. Assim, embora a palavra presidencial ultrapasse o limite legal, o governo viva de amadorismo e namore o autoritarismo, exorbite competências ou deixe de exercê-las, a democracia seguiria de pé”, afirma.

Desfaçatez do governo

Se for assim, a eternidade de 3 anos e 8 meses que nos separam de um novo mandatário será sombria, mas sem reduzir a pó o muito que se edificou em favor da cidadania, diz ela. “Leitura mais pessimista é que as instituições não andam na plena forma necessária para o serviço de contrabalançar rompantes presidenciais. Ao longo da crise que nunca acaba, os partidos que governaram o país nas últimas duas décadas foram às cordas, cada qual por seus motivos” comenta.

A colunista enumera que o PSDB virtualmente acabou, o PT não renovou suas lideranças. O Supremo Tribunal Federal, antes prestigiado como poder moderador da República, imergiu em debates menores, vaidades individuais, decisões fortuitas e suspeições. Faz crescer a incerteza, em vez de controlá-la.

“Diante da desfaçatez do governo, que acena para a guerra externa, ameaçando avançar sobre a Venezuela, e atiça os brios de quem se anime à interna, incentivando o armamento da população, cabe perguntar se há alguém para pôr o guizo no gato”, complementa. “Que a Nova República acabou é um fato. A questão é que democracia ainda temos e se a teremos por muito tempo. Não se sabe bem quando e como regimes democráticos terminam. Mas bem é que não é”, conclui.