A destruição como tática de uma estratégia

O que pretende o governo Bolsonaro? Porque é "conservador nos costumes e liberal na economia"? São mesmo um bando do boçais governando o Brasil?

Por Altair Freitas*

Brasil doente - Ilustração: Duke

O bolsonarismo é uma força destrutiva. Reparem que, em quatro meses de governo, todas as iniciativas fundamentais dele e seus ministros são para destruir, desmontar, desqualificar,  serviços públicos, direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, a educação pública, a cultura, as históricas posições da diplomacia brasileira no campo externo, e tudo o mais relacionado às regulamentações que o Estado Nacional estabeleceu sobre o capital privado visando diminuir ao menos um pouco sua natural selvageria e anseio pelo lucro fácil a qualquer preço. E vem muito mais por aí, caso sigam governando.

Porque a destruição de quase tudo é o caminho que vem sendo usado pelo grande capital financeiro para garantir que os Estados Nacionais garantam a transferência de riqueza e renda das massas populares para o sistema financeiro de modo estrutural e permanente. Se vocês prestarem atenção, boa parte dos países hoje encontram-se com elevados padrões de endividamento com bancos, financeiras em geral, em suma, com o setor privado, com grande conglomerados capitalistas. Tais dívidas são, de modo muito amplo, resultado da salvação que os Estados Nacionais fizeram ao próprio capital financeiro à beira do colapso desde a deflagração da chamada "crise das hipotecas" nos EUA, que se espalhou pela Europa e depois varreu ventos aqui pela América Latina. No caso europeu, boa parte das dívidas são com o Banco Central Europeu, que injetou centenas de bilhões de Euros nos países para que eles pudessem salvar seus bancos e financeiras. Em países como o Brasil, os governos contraíram empréstimos diversos – internos ou externo – com financiadores privados em troca da garantia de boas remunerações na forma de juros elevados. Num ou noutro caso, o cerne da questão está no endividamento dos Estados Nacionais.

Vejamos alguns dados do tamanho da dívida pública em relação ao PIB:

Itália = 131% do PIB; Grécia = 176% do PIB, EUA = 105% do PIB; Japão = 200% do PIB;
França = 100% do PIB; Espanha = 98% do PIB; Argentina = 65% do PIB; Brasil =  78%do PIB.

Reparem, portanto, que o grande capital financeiro precisa garantir que os países mantenham um permanente fluxo de remuneração, através dos orçamentos estatais, para a sua sobrevivência. O problema é que, para garantir isso, os países precisam cortar pesadamente os investimentos e gastos com programas, serviços e leis que garantam à massa trabalhadora históricos direitos por ela conquistados à custa de muitas lutas, rebeliões, revoluções e eleições. O problema é agravado pelo baixo crescimento econômico registrado no mundo capitalista há uma década, especialmente no âmbito da produção efetiva de bens de capital (máquinas e equipamentos) e bens de consumo, configurando um longo período de estagnação econômica.

Com a crise do capitalismo deflagrada em 2007/2008, esgotaram-se saídas no âmbito da chamada "democracia ocidental", com as alternâncias de poder entre setores do centro e da dita "esquerda" (a velha social democracia reformista, não revolucionária, adepta de pequenas alterações no capitalismo para deixá-lo mais "humano" ou menos selvagem, como preferem alguns). Uma década depois, INCLUSIVE NO BRASIL, a questão financeira e econômica não foi resolvida a contento e as forças do capital financeiro decidiram dar um basta. É preciso garantir que o capitalismo seguirá dominando sob o comando do sistema financeiro. Custe o que custar, doa a quem doer.

Na Europa entre as décadas de 20 e 30, a saída encontrada pela grande burguesia em vários países foi a utilização de forças políticas autoritárias, violentas, demagógicas, patrocinadas diretamente pelos grandes conglomerados privados para buscar solucionar a crise do pós 1ª Guerra Mundial e da hecatombe da Quebra da Bolsa de Nova York em 1929 (ela mesma um efeito do pós guerra), que resultaram no fenômeno do nazifascismo liderados por gente como Benito Mussolini, Hitler, Franco (Espanha), Salazar (Portugal), e outros menos cotados. Essas forças foram financiadas para que, no poder, garantissem aos grandes conglomerados, a manutenção dos seus negócios, ameaçados à época pelo avanço do movimento operário de cunho socialista. Deu no que deu!

Na Europa de hoje – em vários países – nos EUA de Trump, no Brasil de Bolsonaro e em várias outras nações, o cenário é muito parecido: forças políticas autoritárias galgaram chegar ao poder para destruir as estruturas que garantiam um pingo de Bem Estar Social ao povo, para transferir riquezas ao grande capital. E qual a tática de luta, quais os mecanismos para obterem apoio buscar varrer com as forças de centro-esquerda (que efetivamente não deram conta de solucionar a contento a crise do capitalismo, insisto nesse tema)? A pauta moral, a grita contra a modernização de práticas sociais ultrapassadas, o ataque ao avanço das lutas das mulheres (anti-feminismo), o racismo explícito contra negros, asiáticos, indígenas, o posicionamento contrário aos direitos civis de gays, lesbiscas e transgêneros, a disseminação de ideias absolutamente irracionais, anticientíficas, mentiras absurdas (criacionismo, Terra Plana, "marxismo cultural" dominando o mundo, etc).

E porque se utilizam desses instrumentos? Porque ainda é forte a presença de setores sociais que são contra mudanças, especialmente aqueles que são diretamente influenciados pelo catolicismo conservador e pelas igrejas evangélicas que pregam que a única verdade possível está no texto bíblico, a partir de interpretações reacionárias (ou "fundamentalistas" como dizem alguns) dos livros que compõem a Bíblia. É uma herança profunda do medievalismo europeu e, mais recentemente, do avanço da propaganda sionista que vem financiando igrejas neopentecostais que se especializam em difundir uma interpretação literal do chamado "Velho Testamento" hebraico, com suas guerras "santas" e perseguições aos fiéis de outras crenças. Essas igrejas têm promovido uma ampla propaganda de Israel, país acossado pelas demandas legítimas do povo palestino, fenômeno muito nítido no Brasil, nos últimos anos. Basta ver o volume de excursões a Israel para promover batismos coletivos no rio Jordão (Bolsonaro foi batizado lá pela Assembléia de Deus), ou mesmo o ícone mor desse movimento, que foi a construção do "Templo de Salomão", pelo bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, em São Paulo. Macedo, aliás, tornou-se uma espécie de rabino, rezando cultos com vestes hebraicas.

Agregue a isso, especialmente na Europa e nos EUA, o problema com as ondas imigratórias oriundas de países asiáticos, africanos e latino-americanos, que pressionam as estruturas locais no quesito emprego, massas humanas que abandonam seus países devastados pela crise geral que se espalha por vastas regiões. Crises essas, de modo muito geral, decorrência não apenas da atual onda predatória que varreu o capitalismo desde 2007/2008, mas também mais estruturais que remontam ao colonialismo europeu do século XIX e que durou até pelo menos os anos 70 do século XX.

Aqui no Brasil, portanto, o bolsonarismo não está descolado dessa onda e seus principais líderes expressam essas ideias retrógradas e ganharam muita força entre setores grandes da população, geralmente os mais retrógrados (a turma "conservadora nos costumes"), somados ao desalento da depressão econômica que atingiu o país a partir de 2013/2014 que, ao lado de intensa desmoralização do petismo e da esquerda em geral, atacada como corrupta e responsável exclusiva pela crise econômica do país.. A pauta “conservadora” uniu-se à desestabilização econômica gerada pela própria crise do capitalismo e pela crise política deflagrada ao final de 2014 com a recusa do PSDB em aceitar a derrota eleitoral para Dilma Roussef. De lá para cá, há uma espécie de avalanche reacionária, facilmente identificada nas ondas do tipo “escola sem partido” e nos recentes ataques explícitos do governo a professores em geral e às áreas das ciências sociais, anúncio de cortes brutais de verbas para as universidades federais, vistas como antros de “balburdia e gente pelada”.

Longe de serem "boçais", "bobos", "ignorantes" e "idiotas", as declarações, gestos, simbolismos e práticas de governos do bolsonarismo no poder, expressam um programa político muito bem alinhavado. Suas declarações, que nos parecem insanas, cheias de ignorância e mentiras, são, na verdade, uma esperta tática de distração por um lado e de mobilização, por outro, da sua base social atrasada, contra quaisquer ideias progressistas, tidas como manifestações de “comunismo” e outras bobagens do tipo. Mas são bobagens eficientes. São bobagens que ajudam a pavimentar uma rodovia ultra autoritária, regressiva e repressiva, para evitar que os setores sociais que se opõem ao desmonte do Estado Nacional e ao fim dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários lutem para barrar esses retrocessos que servem ao grande capital financeiro. São "bobagens" aos nossos olhos, mas absolutas verdades aos olhos do bolsonarismo e do ultra-conservadorismo alimentado pelo neo pentecostalismo. O irônico nessa coisa toda, é que a maior parte da base social do bolsonarismo é composta por trabalhadores (as), gente humilde, e uma pequena burguesia ("classe média") bem intencionada mas profundamente afetada pela crise do capitalismo, manipulada por espertalhões de todo tipo, que vão de pastores milionários aos ideólogos do atual governo. Se prevalecerem as principais ações do governo Bolsonaro como a reforma da previdência, ampla privatização dos serviços e empresas publicas, ampliação da reforma trabalhista, completa desregulamentação das legislações protecionistas, etc, esses serão os setores mais afetados. Mas terão o consolo de estarem a serviço da "vontade de Deus" graças à imposição a ferro e fogo da agenda ultra conservadora nos costumes. Caso efetivamente consigam impô-las.

É de fundamental importância que as forças progressistas e os demais setores amplos, democráticos, que se opõem à avalanche liberal-reacionária, se levantem, se organizem, se unam e barrem esse enorme desmonte e retrocesso em curso. É preciso preservar a democracia. É preciso evitar que décadas de avanços tímidos no mundo do trabalho e dos direitos sociais sejam reduzidos a pó. É preciso lutar. E vencer!