Sobre o Ministério da Educação de Bolsonaro: Tecnoinaptocracia

Começamos muito mal. Muito. Muito. O básico é deixado de lado, o necessário é deixado de lado.

Por Giam C. C. Miceli*, no Le Monde Diplomatique

z - Brain vs. Brawn, de Yau Hoong Tang

Apesar do título, este é um artigo sobre educação. Nesses últimos meses, a população brasileira tem sofrido com uma série infindável de indefinições. Foram muitas promessas pré-eleições e uma desorientação absoluta no pós-eleições. Uma das grandes promessas foi a nomeação de ministros de acordo com a capacidade técnica, o que, considerando o histórico de troca de favores e apadrinhamento que marcam a cultura política brasileira, é algo que não deixa de soar bem. É natural que o ministro seja escolhido conforme sua capacidade de gerir (e, quem sabe, inovar) seu campo de atuação. E reconhecemos a dificuldade do cargo.

No campo educacional, tivemos, em primeiro lugar, e por pouquíssimo tempo, um agora-ex-ministro que não disse a que veio. Estava lá, apenas ocupando cadeira. Seria vergonhoso afirmar que um país não tem um ministro da Educação. Mas é provável que ainda fosse mais digno. Seu maior feito: tentar exigir o canto do hino nacional nas escolas, de modo que fosse filmado. A pressão popular, sobretudo por parte daqueles que respeitam a lei (Estatuto da Criança e do Adolescente) e entendem o mínimo de processos de escolarização, forçou o recuo.

Não houve um debate, sequer, sobre propostas para reduzir o crescente analfabetismo funcional. O então ministro foi incapaz de perceber que a rede educacional deve sofrer uma expansão, de modo que mais e mais pessoas tenham acesso ao que conhecemos como educação escolar, mas, ao mesmo tempo, deve ser acompanhada por um ensino de qualidade, que aqui pode ser definido como: possibilidade de acesso e permanência na escola, uma escola que saiba lidar com as diferenças, uma escola que seja capaz de atender a comunidade, uma escola que ofereça boas refeições, uma escola que seja capaz de oferecer boas atividades, dentre outras coisas. A título de ênfase: a escola, sozinha, não resolve nada. A visão de uma educação redentora deve ser combatida, pois apenas gera sobrecargas e frustrações sobre os trabalhadores da educação. Aquilo que chamo de “educação de qualidade” deve ser acompanhado por políticas de elevação salarial, redução do desemprego, investimentos em lazer/cultura, enfim, por uma série de políticas que não são voltadas ao campo educacional, mas que podem contribuir com o sucesso dos processos de escolarização. O que temos, ainda nos tempos atuais, é a escola de primeiras letras que marcou nosso país na transição do século XIX para o século XX. Estamos no XXI, e o que preocupou o então ministro foi o canto do hino nacional. Essa foi sua única proposta, em meses, para garantir a efetivação de melhorias na vida escolar de crianças, jovens e adultos.

Não houve um debate sobre currículo escolar, sobre possibilidades de uma escola mais aberta, que realmente forme o cidadão dentro da perspectiva do desenvolvimento pleno do educando, item que inclusive se faz presente em nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A ideia de desenvolvimento pleno perpassa aspectos físicos, cognitivos, éticos, estéticos, artísticos, mas isso não interessa. Vocês já repararam como o tempo é usado indevidamente em uma escola? Já pararam para questionar o que leva à disparidade entre Matemática e Educação Física, ou entre Português e Artes? Alguém pode falar que Matemática é mais importante. Com base em quê? O que retira, desde o início, a possibilidade de algum estudante se encantar pelas Artes? Naturalizamos mazelas escolares, mas o que importa é cantar o hino.

Após uma sabatina, foi notório o fato de o então ministro não ser apto ao cargo. Ao que tudo indica, nem ao magistério sua aptidão transparece minimamente. É inapto, simplesmente. No entanto, de acordo com o presidente da República, todos os ministros seriam nomeados de acordo com critérios técnicos, por incrível que pareça, deixando de lado o que o mesmo denominou “velha política”.

Tecnoinaptocracia
Brain vs. Brawn, de Yau Hoong Tang
Após a demissão, outro ministro foi nomeado. Professor universitário. Um leve “deslize” foi cometido ao afirmar que o mesmo seria doutor, o que é mentira. Para quem não sabe, o título de doutor, indicativo de quem passou pelo doutorado (quatro anos de pesquisas, além da exigência de apresentação de alguma novidade, em termos conceituais e/ou metodológicos), é uma exigência para o ingresso no magistério superior. Antigamente, as exigências eram menos cruéis. Todavia, é comum vermos professores antigos que, mesmo dentro da universidade, concluíram o doutorado devido ao compromisso com o desenvolvimento científico. Temos um ministro que não possui o título de doutor, pelo visto não está muito interessado em possuí-lo e, além disso, sua última atualização do currículo Lattes foi em 2017, isto é, há dois anos. Isso significa que temos um professor universitário, hoje ministro da Educação, que está há dois anos sem desenvolver absolutamente nada. Ele produz menos que um estudante de um curso de mestrado e menos que um graduando mais ou menos empenhado. De acordo com o novo ministro, temos que adaptar as ideias do astrólogo Olavo de Carvalho, para que assim seja possível combater o “marxismo cultural” (entre aspas, pois é algo que sequer existe. Quem leu duas páginas de qualquer livro do Marx sabe disso). Temos um ministro da Educação que tem como meta aplicar as ideias de um astrólogo que não possui formação alguma e, ainda assim, lamentavelmente, veio a se tornar patrono desse governo. Mas o discurso raso como um pires gruda nas massas. Esse é o ponto. Cria-se um inimigo, criam-se enunciados que levam à crença de que o inimigo será combatido e aniquilado. Como consequência, teremos um novo país. Como já foi afirmado em artigos anteriores, esse inimigo é um comunismo que nunca passou por aqui. Mas não adianta falar. O estrago já foi feito, seja por inocência, seja por desonestidade.

Ainda sem projetos, ainda sem um plano de combate ao analfabetismo funcional, ainda sem um plano de melhoria estrutural das escolas públicas, ainda sem novas propostas curriculares (ele certamente não sabe o que é currículo. E não falo do Lattes), ainda sem propostas para aproximar escola e comunidade indo além das festas juninas, ainda sem novas propostas para a educação no campo, dentre outros projetos imprescindíveis, é possível perceber que o novo ministro é mais do mesmo. Ele consegue ir além, pois afirmou que no Nordeste deveriam investir mais em agronomia do que em Filosofia. É um ministro que aposta em estereótipos e preconceitos. É a mesma verborragia barata e sem fundamentos do ministro anterior. Muda-se o ministro, mas permanece a situação.

Começamos muito mal. Muito. Muito. O básico é deixado de lado, o necessário é deixado de lado. O motivo é óbvio: não sabem resolver e não têm propostas. São tecnocratas incapazes mesmo de manter um discurso voltado à tecnocracia. Eles não se sustentam. Em termos educacionais, teremos a permanência de problemas que são presentes há décadas, teremos o desrespeito à legislação (com o grande risco que correm a LDBEN e o ECA), teremos as mesmas propostas educacionais ultrapassadas, teremos a total falta de alternativas para resolver problemas e teremos uma possível crise no Fundeb, que é o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica. Aliás, muitas redes de ensino usam verba do Fundeb para pagar salários, mais a proposta do Fundo não é essa. Nada disso é discutido, e o motivo é simples: inaptidão.

*Giam C. C. Miceli é professor da rede municipal de Itaboraí, licenciado em Geografia, com pós em Educação e mestrado em História da Educação.