A teoria jusmarxista de curvatura da vara

"Quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. É preciso curvá-la para o lado oposto"
Por Fábio Garcia*

O Machado e a Vara

 Em outro artigo, expus a ideia da teoria de curvatura da vara no campo do direito citada por Lenin e usada no livro do professor Demerval Saviani sobre educação:
"Quando a vara está torta, ela fica curva de um lado e se você quiser endireitá-la, não basta colocá-la na posição correta. Ê preciso curvá-la para o lado oposto".
Dando novo significado a essa metáfora, no livro do professor Fernando Antônio Negreiros Lima, há um resgate sobre as origens da palavra vara no universo jurídico:
“A origem do uso do vocábulo vara remonta às Ordenações do Reino Português. Com efeito, a legislação lusitana dispunha que os juízes deveriam portar consigo varas com a insígnia real, como símbolo de sua autoridade: “E os juízes ordinários trarão varas vermelhas e os juízes de fóra brancas continuadamente, quando pella Villa andarem, sob pena de quinhentos réis por cada vez que sem ella forem achados” (Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXV). Daí nasceu a tradição de se designar como vara a lotação de cada juiz. Nesse sentido, confira-se a lição de Plácido e Silva”.
É de suma importância entender que a metáfora de Lênin usada pelo professor Demerval Saviani tem ecos muito mais profundos na ciência jurídica marxista (jusmarxismo), pois ela explicita, de maneira didática, o duplo papel do direito enquanto manifestação social específica do capital (a vara inflexível na sua forma jurídica) apresentada por Evgenne Pachukanis e a sua respectiva instrumentalização (curvatura flexível da vara aplicada em sentido progressista ou reacionário dependendo de quem a porta, usando de empréstimo os conceitos de Gramsci) pelas forças políticas organizadas das classes dominantes (descoberta feita pelo também jurista soviético, Petr Ivanovich Stutchka). Segundo Stutchka:
“O (…)elemento característico do direito consiste em ser garantido pela classe dominante mediante um poder organizado (normalmente o estado) cujo objetivo principal, uma vez que não é único(…)” de -inclusão nossa- “(…)proteger este ordenamento por corresponder (ou melhor, para garantir os interesses) da própria classe dominante. Parece que a respeito desta coercibilidade do direito teriam de concordar todos os que veem nele um conjunto de normas, isto é, em última análise, um conjunto de leis promulgadas e reconhecidas precisamente por aquele poder. Todavia, para desenvolver explicitamente esta teoria foi necessária uma tomada de posição muito corajosa como a do professor alemão Ihering. Este proclama abertamente que a força, a coação, é uma característica absoluta do direito e vê no próprio direito unicamente um interesse protegido. Com certeza, teve a intuição de que se tratava do interesse da classe dominante e de um poder de classe, mas é evidente que não chegou a compreender plenamente esse elemento de classe”.

Esse ponto abordado pelo P. I. Stucka é de fundamental importância, ressalvado as ponderações quanto ao nascimento e maturação da forma jurídica no capitalismo, feita por seu amigo e companheiro Evgenne Pachukanis:
“O camarada P. I. Stutchka considera já ter elucidado esse ponto, e, além disso, um ano antes de eu ter publicado meu trabalho(…). O direito, como sistema particular de relações sociais, distingue-se, em sua opinião, pelo fato de ser apoiado por uma força organizada, ou seja, estatal, de classe. Evidentemente eu já conhecia esse ponto de vista, mas mesmo agora, depois de uma explicação secundária, considero que, no sistema de relações que correspondem aos interesses da classe dominante e que são sustentadas por sua força de organização, pode-se e deve-se separar os elementos que dão fundamentalmente matéria para o desenvolvimento para a forma jurídica”.
Em outro momento, Pachukanis concorda como “inteiramente correta o problema do direito como um problema de relações sociais”. No entanto, ao só estabelecer o elemento volitivo (de vontade) da classe dominante no estabelecimento do direito, ignora-se os dizeres de Pachukanis sobre a própria “objetividade social específica dessa relação”. Daí joga-se na vala de todas as relações sociais capitalistas a própria relação social específica do direito (especial e própria do capital), subordinando-a ao mero voluntarismo (autonomia da vontade) das classes dirigentes organizadas em força política estatal.

A COERCIBILIDADE DA VARA E AS CURVATURAS EM SENTIDO REACIONÁRIO

A Vara (direito) está sob posse das classes proprietárias e com ela detém o monopólio estatal da produção de leis (autoridade legislativa) e o monopólio estatal da autoridade coercitiva (sanção punitiva e a violência organizada). Ela confere ao seu portador, a função de polícia (tutela) de uma determinada ordem social. Aqui se justifica a máxima do direito romano, que na contemporaneidade se manifesta de maneira sofisticada e impessoal o “Se in armis jus ferre et omnia fortium virorum esse” (Lívio, V,36), em tradução livre, “que nas armas traziam o seu direito, pertencendo tudo aos mais fortes”. Com o fim de exercer esse papel de tutela da ordem vigente, podemos dizer que as atuais classes proprietárias curvam a vara (direito) num sentido repressivo (reacionário), conduzindo “debaixo de vara” as classes subalternas para manter na legalidade (controle) a ordem social ultrapassada com sua respectiva classe dirigente (bloco histórico), exposta por Antônio Gramsci em Cadernos do Cárcere:
“É difícil afirmar que um partido político (dos grupos dominantes e também de grupos subalternos) não exerce funções de polícia, isto é, de tutela de uma determinada ordem política e legal. Se isto fosse demonstrado taxativamente, a questão deveria ser colocada em outros termos: sobre os modos e as diferenças através das quais se exerce essa função. O sentido é repressivo ou difuso, isto é, reacionário ou progressista? Um determinado partido exerce a sua função de polícia para conservar uma ordem externa, extrínseca, cadeia de forças vivas da História, ou a exerce num sentido que tende levar o povo a um novo nível de civilização, da qual a ordem política e legal é uma expressão programática? Efetivamente, uma lei encontra quem a infringe:
1) entre os elementos sociais reacionários que a lei destronou;
2) entre os elementos progressistas que a lei comprime;
3) entre os elementos progressistas que não alcançaram o nível civilizacional que a lei pode representar.
Portanto, a função de polícia de um partido pode ser progressista ou reacionária: progressista quando tende manter na órbita da legalidade as forças reacionárias alijadas do poder e a elevar ao nível da nova legalidade as massas atrasadas. E reacionária quando tende a comprimir as forças vivas da História e a manter uma legalidade ultrapassada, anti-histórica, tornada extrínseca”.

Para a proteção dos mecanismos da forma jurídica, é necessário que a autoridade coercitiva imponha e medie o uso da sanção punitiva e da violência legal em seus próprios termos (pesos e contrapesos advindo da correlação de forças entre as classes dirigentes e as próprias classes subalternas). Nesse quesito, Stutchka diz que:
“Mas, como já foi dito, a maioria dos juristas sérios reconhece, de uma maneira ou de outra, a teoria da autoridade coercitiva, ainda que tais juristas o façam com a reserva de que o Estado não é em si, e para si uma organização da coerção, mas que “a organização da coerção é, apenas, realizada pelo Estado” (Sersenevic). Todavia, isto não significa, de modo algum, que todos os juristas tenham a mesma ideia do significado e do caráter dessa autoridade. Desde a primitiva concepção romana do direito “se in armis jus ferre et omnia fortium virorum esse” (Lívio, V,36), que se refere explicitamente à força das armas e à lei do mais forte até as diversas concepções metafísicas do Estado elaboradas pela refinada ciência dos contemporâneos, o sentido do raciocínio é o de que a força ou a autoridade, ou seja, hoje, o Estado, não só protege o direito, mas, inclusive, o cria como mero complexo de normas jurídicas (isto é, de leis) ”.
A necessidade do Estado como autoridade coercitiva na manutenção do direito é também uma constatação clara de Lênin, em seu livro, “Estado e Revolução”:
“O direito burguês em relação a distribuição dos produtos de consumo pressupõe, como é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o direito nada é sem um aparelho capaz de obrigar a observação das normas do direito”.
Este caráter envergado e repressivo da vara (direito) é a curvatura necessária para mantê-la em sua posição correta, de acordo com a metáfora de Lênin usada no início deste artigo. No entanto, em graves instabilidades do capitalismo em sua fase imperialista, quando o seu status quo está em grave ameaça por sua própria autofagia, essa vara precisa ser endurecida através do fascio – feixe de varas – ou, em outros termos, através do fascismo, restabelecendo a ordem entre as classes proprietárias e a contenção de processos revolucionários das classes subalternas, restaurando, por fim, em processo inverso de transição, ao capitalismo de estágio liberal (reposicionando assim a vara em sua posição correta).

O ENFEIXAMENTO DA VARA (FASCISMO) COMO A RADICALIZAÇÃO REACIONÁRIA DO DIREITO

Aqui cabe frisar que existem gradações ao sentido reacionário de curvatura da vara que as classes proprietárias podem vergar. No liberalismo econômico, o sentido repressivo de curvatura da vara está nos marcos do controle da violência legal e da sanção punitiva, e está afrouxada nas regras das liberdades formais. Em auges da crise sistêmica do capitalismo, quando os setores liberais se acham desmoralizadas na condução do estado e a luta de classes se radicaliza com perigos reais de tomada do poder pelas classes subalternas, certas classes proprietárias (na luta pela posse estatal do status de auctoritatis interpositio no sentido dado por Schmitt) reagem com o enfeixamento da vara (direito) em sentido antiliberal, conduzindo o estado ao seu fascio ou fascismo- o feixe de varas (união do poder de punir) com o machado (poder de vida e morte).
Aqui o estado de direito é fortemente delimitado e os mecanismos de violência legal e sanção punitiva são ampliados, além das liberdades formais suprimidas, neutralizando assim possibilidades políticas de reação, dando amplos poderes de ação direta do Estado. São delimitadas o direito contratual e a propriedade, e a anarquia da produção é retardada pela aplicação de um capitalismo de estado como solução de sua própria autofagia. Essa é a reação de certas classes proprietárias que assumem para si o posto de auctoritatis interpositio ao capitalismo putrefato. Antônio Gramsci traz notáveis contribuições a esse fenômeno político-jurídico específico:
“É necessário observar como nos regimes totalitários a função tradicional do instituto da Coroa é, na realidade, absorvida por um determinado partido, que é totalitário exatamente porque assume tal função. Embora cada partido seja a expressão de um grupo social e de um só grupo social, ocorre que, em determinadas condições, determinados partidos representam um grupo social na medida em que exercem uma função de equilíbrio e de arbitragem entre os interesses do seu grupo e os outros grupos, e na medida em que buscam fazer com que o desenvolvimento do grupo representado se processe com o consentimento e com a ajuda dos grupos aliados, e muitas vezes dos grupos decididamente inimigos. A fórmula constitucional do rei ou do presidente da República que “reina mas não governa” é a fórmula jurídica que exprime esta função de arbitragem e a preocupação dos partidos constitucionais de não “descobrir” a coroa ou presidente; as fórmulas sobre a não-responsabilidade para os atos governamentais do chefes de Estado, mas sobre a responsabilidade ministerial, são a casuística do princípio geral da tutela da concepção da unidade estatal e do consentimento dos governados à ação estatal, qualquer que seja o pessoal imediato do governo e o seu partido.
No caso do partido totalitário, estas fórmulas perdem o seu significado, levando à minimização do papel das instituições que funcionavam segundo as referidas fórmulas; mas a própria função é incorporada pelo partido, que exaltará o conceito abstrato de “Estado” e procurará de várias maneiras dar a impressão de que a função de “força imparcial” continua ativa e eficaz”.
Quando aqui se diz “partido”, entendamo-nos no sentido ampliado dado por Gramsci e que deve ser estendido ao conceito de força política de classe dominante ou frações dela organizada no campo do direito (descoberta essa feita por Stuchka) com suas respectivas instituições jurídicas, operadores e intelectuais que também são partidos e frações desse Estado-maior de partidos. Aqui está desnudada a função do que poderíamos chamar de partidos togados. Diz Gramsci sobre o conceito geral de partido:
“Observa-se que no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais se dividiram, por necessidade de luta ou por qualquer outra razão, em frações que assumiram o nome de “partido” e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma das frações, mas opera como se fosse uma força dirigente superior aos partidos e as vezes reconhecida como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas), são também eles “partidos”, frações de partido”, ou “funções de um determinando partido” (…)”.
Interessante notar como a metáfora da vara permite sistematizar as funções desse direito conforme a necessidade de arbítrio entre as forças de classe amigas-inimigas ou o rompimento dela sem negar os limites impostos pela sua própria forma jurídica surgida pela circulação capitalista de mercadorias. Para exemplificar o efeito prático dessa degenerescência do capitalismo em putrefação no campo jurídico, citaremos Benito Mussolini que dizia o seguinte, em seu livro “O Estado Corporativo”:
“O nosso Estado não é um Estado absoluto e ainda menos absolutista que se mantém afastado dos homens e armado somente de leis inflexíveis, como aliás devem ser as leis. O nosso Estado é um Estado orgânico, humano, intimamente ligado à realidade da vida. A própria burocracia não é hoje e tanto menos será amanhã um diafragma, entre a obra do Estado e os interesses e necessidades efetivas e concretas do povo italiano. Estou plenamente certo de que, a admirável burocracia italiana, como tem feito sempre até hoje, trabalhará com as Corporações, sempre que for necessário, para a melhor solução dos problemas.
(…) Alguém percorrendo os tempos, já falou da abolição da atual Câmara dos Deputados. Expliquemo-nos. (…). Chegará, porém, o momento em que a Câmara deverá decidir seu próprio destino. Haverá por aí algum fascista que esta hipótese faça chorar? Seja como for, saiba que não enxugaremos suas lágrimas. É perfeitamente concebível que o Conselho Nacional das Corporações, substitua «in toto» a atual Câmara dos Deputados: ela nunca foi de meu agrado. Enfim, a Câmara dos Deputados é anacrônica até no seu título: é uma instituição que já existia quando entramos e que é alheia à nossa mentalidade e nossa paixão de fascistas. A Câmara pressupõe um mundo que já demolimos; pressupõe a existência de diferentes partidos políticos e frequentemente de bom grado, o ataque propositado ao espírito de trabalho. Desde o dia em que suprimimos esta pluralidade de partidos, a Câmara dos Deputados perdeu o motivo principal da sua existência.
(…). Quando a 13 de janeiro de 1923, se criou o Grande Conselho Fascista, os homens superficiais talvez pensaram: criou-se uma instituição. Não, nesse dia foi enterrado o liberalismo político. Quando com a Milícia, força armada do Partido e da Revolução e com a instituição do Grande Conselho, órgão supremo da Revolução, suprimimos o liberalismo teórico e prático, foi então que entramos definitivamente no caminho da Revolução. Hoje foi enterrado o liberalismo econômico. A Corporação opera no terreno econômico, como o Grande Conselho e a Milícia operaram no terreno político! O corporativismo é uma economia disciplinada e, portanto, controlada, pois não se pode pensar em uma disciplina sem o devido controle. O corporativismo supera o socialismo e supera o liberalismo cria uma nova síntese.
(…). Repelimos a teoria do homem econômico, a teoria liberal e protestamos sempre que ouvimos dizer que o trabalho é mercadoria. O homem econômico não existe; existe o homem integral que é político, que é econômico, que é religioso, que é santo, que é guerreiro”.
O limite jurídico rompido por certas classes proprietárias (em estado de auctoritatis interpositio) para o respectivo restabelecimento de sua própria ordem (a vara em seu reposicionamento correto) está na imposição de um “direito situacional” – o feixe de varas enrijecido – que se redimensiona pela política e pelo poder (ação aberta do estado) monopolizada nas mãos de uma fração ou um certo grupo das classes dirigentes (aquilo que Schmitt chama de soberano) no controle do Estado. A chave liberal do Direito e da Norma deixa de imperar para entrar em cena a chave do soberano e da política. É necessário compreender neste ponto que há uma necessidade de se ter no bloco de alianças o tal partido togado (operadores, intelectuais e seus entrepostos), posto que ele operará no campo do direito tais interdições e realinhamentos. Assim, adentramos na radicalização reacionária do direito através dos mecanismos do Estado de exceção. Carl Schmitt, jurista dos tempos do nazismo alemão, dizia em seu livro, “teologia política”, citada no livro de filosofia do direito do professor Alysson Mascaro:
“Todo direito é “direito situacional”. O soberano cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele tem o monopólio da última decisão. Nisso repousa a natureza da soberania estatal que, corretamente, deve ser definida, juridicamente, não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio decisório, em que a palavra decisão é utilizada no sentido geral ainda a ser desenvolvido. O estado de exceção revela o mais claramente possível a essência da autoridade estatal. Nisso, a decisão distingue-se da norma jurídica e (para formular paradoxalmente), a autoridade comprova que, para criar direito, ela não precisa ter razão/direito”.
Os regime nazi-fascistas do século passado são os exemplos do quadro limite de um estado de exceção (enfeixamento da vara, fascio). No entanto, há gradações nesse enfeixamento ao estado de exceção que será abordado de maneira mais profunda em outros momentos.