Os “jabutis” da proposta de “reforma” da Previdência

Paulo Veras diz, em matéria no Blog da Folha de Pernambuco, que "reforma" da Previdência, envolta em polêmica, engloba outras surpresas: parlamentares alertam que texto enviado pelo governo está recheado de matérias que não têm relação direta com o tema.

Previdência

Segundo ele, a resistência pode vir sobre pontos que vêm sendo apontados por parlamentares como heterogêneos, chamados no Congresso de “jabutis”. "O termo descreve uma proposta que é incluída em outro projeto, mas que não trata do mesmo assunto, para tramitar mais rápido pelo Legislativo", explica.

O nome deriva do fato de que os jabutis da vida real não conseguem subir em árvores, o que significa que alguém os colocou lá, afirmas Paulo Veras. “É o caso da norma pela qual policiais e bombeiros militares podem disputar eleições, que é abordada pela atual PEC da reforma da Previdência. Entre as diversas mudanças que a reforma faz no texto da Constituição, ela retira o trecho que diz que os militares estaduais são elegíveis desde que se afastem da atividade”, escreve.

Na prática, a PEC permite que os policiais militares possam disputar eleições e exercer os mandatos sem necessariamente deixar a ativa. Embora alguns parlamentares pernambucanos relativizem o peso desses trechos que não tratam diretamente das regras de aposentadoria, outros prometem elaborar emendas para suprimir esses pontos da reforma quando o projeto chegar à Comissão Especial que debaterá o mérito da proposta, segundo o jornalista.

Outro artigo da PEC isenta os empregadores de pagarem a multa de 40% sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ao demitir um funcionário que já está aposentado. Um terceiro retira da Constituição o texto que determina que a aposentadoria compulsória deve ocorrer entre 70 e 75 anos, como foi definido pela “PEC da bengala” em 2015. A proposta enviada sugere que uma lei complementar – mais fácil de ser alterada – defina a idade máxima de atuação de um servidor público.
Segundo Paulo Veras, isso promete ser um barril de pólvora, pois interfere na composição do Supremo Tribunal Federal (STF). “Há ainda um artigo que pretende impedir que ações contra a União sejam movidas na Justiça do Distrito Federal, recurso que era usado para agilizar a tramitação caso o processo tivesse que subir para um tribunal superior. Se for aprovado, quem quiser entrar com uma ação – não só no âmbito da Previdência, mas em qualquer outra esfera – contra o governo federal terá que fazê-lo em seu estado de origem”, escreve.

Segundo o jornalista, esses trechos têm sido criticados por parlamentares que querem retirá-los da PEC da Previdência. Ele informa que o deputado federal Daniel Coelho, líder do Cidadania e favorável à “reforma”, já preparou uma emenda retirando as alterações no FGTS da proposta. “É uma matéria trabalhista e, evidentemente, não está no contexto da Previdência. Isso tende a ser retirado na comissão especial. O que tiver de externo ao tema, principalmente o que não for consensual, vai cair”, projeta Daniel Coelho.

O jornalista ouviu uma série de parlamentares e juristas:

Líder do PSB, Tadeu Alencar também promete apresentar emendas suprimindo os trechos heterogêneos da PEC, incluindo os temas de eleição de PMs e da “PEC da Bengala”. “Essa questão dos militares mostra a utilização de um assunto tão relevante quanto o sistema de Previdência para atender a uma demanda que é corporativa. Além das impropriedades formais, ela traz um elemento delicado que é estar relacionado ao processo eleitoral. E é um debate sub-reptício”, critica o socialista, citado por Paulo Veras.

Para o deputado federal João Campos (PSB), o governo incluiu no texto pontos de fácil percepção para tirar a atenção de outras mudanças. “Quando eles mexem na aposentadoria do trabalhador rural e no BPC (benefício de prestação continuada), você cria uma cortina de fumaça para mexer em outros pontos que também são delicados. Mas estamos mapeando todo o projeto. Em relação ao FGTS, isso não é pauta nem previdenciária, é de cunho trabalhista. A maioria não deve passar”, argumenta.

Na visão do deputado petista Carlos Veras, os trechos que divergem do tema previdenciário estão lá porque o governo não quer melhorar a Previdência, mas fazer uma reforma de ordem fiscal. “Temos levantado essas questões. Essa é uma reforma inconstitucional, que penaliza o trabalhador. Se o governo quer resolver o problema fiscal, a gente deveria começar pela reforma tributária. Não pela reforma da previdência, que atinge a renda das pessoas. Não há um deputado, seja do governo ou da oposição, que não questiona nenhum ponto desse projeto”, dispara.

Defensor da necessidade da reforma da Previdência, o deputado federal Silvio Costa Filho (PRB) diz acreditar que a inclusão de temas que fogem ao debate da previdência atrapalha o avanço do texto. “Essa questão da PEC da Bengala e a dos militares, que foram colocados como alguns jabutis, como se diz no ditado popular, nesse momento não ajuda. Se o governo quer discutir esses temas, eu acho que ele deve vir de outra forma, através de projetos de lei. Ou, se for o caso, através de outras PECs. A gente deve, de fato, focar na reforma mais objetiva”, argumenta.

Para reduzir resistências ao projeto, o deputado do PRB promete apresentar uma emenda para que os idosos que sejam atingidos pelo BPC escolham se querem receber pelas regras atuais ou pelo modelo proposto pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Líder do Solidariedade na Câmara, o deputado Augusto Coutinho não acredita que esses pontos possam atrapalhar o andamento da reforma. “Eu acho que o momento agora é de a gente votar a admissibilidade da proposta, que deve ser votado favorável e não tem porque não votar favorável. É você admitir que a proposta tramite. Daí em diante vai ter muitos ajustes. Essa questão dos 40% do FGTS precisa ser discutida. Se não for agora, no contexto da reforma da Previdência, certamente vai ser discutido depois. Com certeza essa PEC vai ser desidratada em relação a todas essas dúvidas e, com certeza, o Parlamento vai se debruçar sobre elas. Tem gente que diz que esses temas não têm a ver com a Previdência. Outros dizem que sim. A eleição de PMs e bombeiros militares eu também acho que não tem nada a ver. Mas essas matérias podem ser corrigidas no texto final. Até porque, o governo não tem base política para impor que a reforma passe sem nenhuma mudança”, avalia.

Na mesma linha, o líder do PSD, André de Paula, diz que o partido está analisando de forma muito criteriosa toda a PEC. “O fato de ter matérias que não dizem respeito à Previdência Social propriamente dita é algo que nos faz ter ainda mais atenção com os temas. A gente precisa compreender o que justifica trazer um tema que não guarda sintonia e incluir numa matéria como esta. Isso não impede de ser aprovado. A reforma da Previdência é fundamental, muito importante e urgente”, diz. “O jabuti alerta, chama atenção, existe maior cuidado. Mas não quero dizer que se nós concordamos, nós não vamos botar. Não é o fato de ser jabuti que exclui dessa proposta. Nossa posição será resultado do nosso debate. Tenho procurado ouvir todas as posições e categorias que nos procuram”, argumenta.

Juristas

Em 2015, o STF decidiu que é inconstitucional incluir em Medidas Provisórias (MPs) emendas que fujam ao tema do projeto principal, o que a Corte chamou de “contrabando legislativo”. Foi no âmbito de uma ação da Confederação Nacional dos Profissionais Liberais, que criticava a extinção da profissão de técnico em Contabilidade através de uma emenda que tratava de assunto diverso da medida proposta. Desde então, o número de emendas desse tipo caiu no Congresso Nacional. Um estudo da Consultoria do Senado, divulgado em fevereiro de 2018, mostrou que antes da decisão do Supremo, 48% das emendas às MPs tinham tema diverso da proposta original. Depois da decisão do STF, esse percentual caiu para 21%. Foram analisadas todas as MPs e suas emendas apresentadas entre os anos de 2014, 2015 e 2016.

Para Marcelo Labanca, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, a jurisprudência do Supremo se refere à Lei Complementar número 95, que é a legislação que determina como serão feitas novas leis. “A jurisprudência do STF que obriga a manter a organicidade daquilo o que está sendo proposto é em relação a uma lei infraconstitucional. O que a gente está discutindo é uma emenda à Constituição, que está uma hierarquia acima. Porque a Constituição vale muito mais do que qualquer lei infraconstitucional. As únicas coisas que uma emenda constitucional não podem alterar são as cláusulas pétreas, como a separação de poderes e o federalismo”, explica.

Ainda assim, o professor de Direito Constitucional João Paulo Allain Teixeira, da Universicade Católica e da Universidade Federal de Pernambuco, acha que esses pontos podem ser usados para que a reforma seja questionada no STF após a sua aprovação no Legislativo. “Como é um tema que altera direitos, acredito que a reforma vai ser questionada no STF. Hoje faz parte do jogo político essa dimensão. Quando um determinado grupo político não se sente satisfeito, quase sempre o Judiciário é a porta de entrada para continuar essas demandas”, lembra.